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segunda-feira, março 19, 2018

MiLAGRES DE NOSSA SENHORA DE GONZALO DE BERCEO - TRAD. ERIC PONTY

Apresentamos à edição de Milagres de Nossa Senhora de Gonzalo de Berceo (Poema de Introdução), do Manuscrito 93 do Arquivo da Abadia de Santo Domingo de Silos, baseando-nos na edição de Michael Gerli (Berceo, Gonzalo - Os Milagres de Nossa Senhora, Madrid, Cátedra, 1988), cuja consulta recomendamos.

1 Os Amigos e vassalos de Deus omnipotent,
Se vós me escutásseis despor vosso consiment,
Queria-vos contarun bom aveniment:
Vou pegar em cabo por bom verament.

2 Eu Mestre Gonzalvo de Berceo nomeado,
Indo em romaria cai num prado,
Verde e bem intacto, de flores bem provado,
Lugar cobdiciaduro porém homem cansado.

3.Davam olor sovelas flores bem olientes,
Refrescavam em homens nelas caras e as mentes;
Manavam cada canto fontes claras correntes,
No verão bem frias, no inverno quentes.

4. Há bem e grande abondode bons arvoredos,
Os milagres e figueiras, pêros e maganearas,
E muitas outras frutas de diversas nomeadas,
Mas non haver nenhumas apodridas nem acesas.

5 A verdura do prado, o odor das flores,
As sombras das árvores de vários sabores,
Refrescaram-me todo e perdi os sudores:
Poderei viver o homem com aqueles olores.

6. Nunca trovei no século um lugar tão deleitoso,
Nem sombra tão tempradani olor tão saboroso;
Descarregue meu ropiella por haver mais vicioso,
Possui-me à sombra dum Arbor formoso.

7. Fazendo à sombra perdi todos cuidados,
Odí somos de aves, doces e modulados:
Nunca udieron homens órgãos mais deleitosos,
Nem que formar pudéssemos mais acordados.

8. Umas têm a quinta, e as outras dobravam;
Outras tem o ponto, errar não as deixavam;
Ali posar e ao mover, todas as esperavam,
Aves torpes nem roncasy non se acostavam.

9. Não serei organista nem serei violeiro,
Nem giga, nem saltério nem mão do roteiro,
Nen instrumento nen lenguanin tão claro vozeiro
De cujo canto valesse com este um dinheiro.

10. Porque vós désseis todas estas bondades,
Non contamos a dizimas, isto bem o criades:
Que hajam de nobrezas tantas diversidades
Que não as contarem priores nem abades.

11 O prado que vos digo havia outra bondat:
Por calor nem por frio non perdem sua beltat,
Sempre estava verde em sua entegredat,
Non perdeis a verdura por nulla tempestat.

12 Manama do que fui terra acostado,
De todo o lanceiro fui logo folgado;
Oblidé todo cuidado o lanceiro passado:
Que ali se morasse seria bem-aventurado!

13 Os homens e as aves, quantos acaecién,
Levavam das flores quantas levar queiram,
Mas mingua no prado nenhuma non facién:
Por uma que levantes e as quatro nascem.

14. Semelha este prado igual de Paraíso,
Em que Deus tão Grande graça, tão grande bendição miso;
Ele que criou tal coisa mestre foi anviso:
Homem que morra se nunca perder o aviso.

15 O fruto da árvore será doce e sábio;
Se Adão houvesse de tal fruto comido,
De tão mal maneira non seria dividido,
Nem tomariam tal dano Eva nem seu Marido.

16 Senhores e Amigos, o que digo havermos
Palavra é escura, espora-la queremos;
Folgamos a corteza, ao miolo entremos,
Prendamos o de dentro, o de fora descemos.

17 Todos quantos vivemos, que em pés andamos,
Sequer no preso no leito vagamos,
Todos somos romeiros que caminho andamos,
São Pedro o diz isto, por ele vós o provamos.

18. Quanto aqui vivemos e alheio moramos;
A fiança dura abençoando a esperamos;
A nossa romaria estão a acabamos,
Quando ao Paraíso nas almas enviarmos.

19. Nesta romaria fazemos um bom prado
Em que trova repaire todo romeiro cansado:
A Virgem Gloriosa, mãe do bem-Criado,
Do qual outro nenhum igual non foi trovado.

20. Este prado foi sempre verde em honestat,
Ca nunca hobo mácula a sua virginidat,
Post partum et in partu foi virgem de verdat,
Ilesa, incorruptaen sua entegredat.

21. As quatro fontes claras que do prado manavam
Os quatro evangelhos, isso significavam,
Ca os evangelistas Quatro que os ditavam,
Quando os escrevem, com ela se falavam.

22. Quanto escrevem eles, ela o emendava,
Isso era bem firme o que ela laudava;
Parece que o Rego todo d'ella manava
Quando ao menos d'ella nada non se guiava.

23 A sombra das árvores, boa, doce e sã,
Em que ave repaire toda a romaria,
Se são as orações que faz Santa Maria,
Que pôr os pecadores rogam noite e dia.

24. Quantos que são no mundo, justos e pecadores,
Coroados e leigos, Reis e Imperadores,
Ali corremos todos, vassalos e senhores,
Todos à sua sombra íamos recolher as flores.

25. As árvores que fazem sombra doce e donosa
São os santos Milagres que lhe fazem à Gloriosa,
Ca são muito mais doces que açúcar saboroso,
A que dão ao enfermo no cuidado raivosa.

26. As aves organicamente estas frutais,
Que hão nas doces vozes, dizem cantos leais,
Estes que São Agostinho, Gregório, outros tais,
Quanto escreveram os seus feitos reais.

27.Estes fazem com ela amor e atinência,
Em laudarem os seus feitos metem toda veemência;
Todos falavam d'ela, ajuntar-se sua sentença,
Porém têm por tudo todo é uma crença.

28. Pássaro negro que canta por fim maestria,
Sequer a calandra que faz grande melodia,
Muito canto mejorel barão Isaías
E os outros profetas, honrada companhia.

29. Cantaram os apóstolos modo mui natural,
Confessores e mártires fazem bem outro tal;
As virgens seguem em grande Mãe caudal,
Cantam diante d'ella um canto bem festival.

30. Por todas as igrejas, isto é cada dia,
Cantam laudes ante dela toda a clerezia:
Todos li fazem a corte a Virgem Maria;
Estes são rosários de grande laceração.

31. Tornemos nestas flores que compõem o prado,
Que do fazem formoso, aposto e temporário;
As flores são os nomes que li dão o ditado
A Virgo Maria, mãe do bom Criado.

32. A Benedita Virgens estrela clamada,
Estrela dos mares, guia desejada,
Sendo dos marinheiros sem aos cuidados guardada,
Ca quando essa vede-nos em sua nave é guiada.

33. É clamada, e és locutora dos céus, reina,
Templo de Jesus Cristo, estrela matutina,
Ô Senhora natural, piedosa vizinha,
Dos corpos e de almas saúde e medicina.

35. Ela é dita fonte de que todos bebemos,
Ela nós darmos o sebo de que todos comemos;
Ela é dita porto aqui que todos corremos,
E nossa porta pôr a qual entrada atendemos.

36. Ela é dita porta em si bem encerrada,
Porém nos é aberta por darmos a entrada;
Ela é a pomba de fiel bem esmerada,
Em que non cai em ira, sempre está pagada.

37. Ela com grande direito é clamada Sião,
Ca é nossa talentosa, nossa defensora:
Ela é dita trono do Rei Salomão,
Rei Grande Justiça, sábio por admiração.

38. Non é nome nenhum o que bem direito avenha
Que em alguma guisa a ela non avenha;
Non há tal que rezem ela não a tenha,
Nem Sancho nem Domingo, nem Sancha nem Dominga.

39. É dita vida, é uva, amêndoa, mal romã,
Que de grãos da vossa graça está toda calcada,
Oliva, cedro, bálsamo, palma bem ajustada,
Piértega na que sovola serpente alçada.

40 O fust que Moisés nela sua mão portava,
Que confundiu os sábios que Faraó apreciava,
Ela que abriu os mare se depois os fechava,
Se non a gloriosa ao non significava.

41. Se meteremos em mente sem o outro bastão
Que partiu a contêm da que foi por Aarão,
Ao non significava, como diz à eleição,
Se non a gloriosa, esta é bem com razão.

42. Senhores e amigos, em vão contendemos,
Entrarmos no grande poço, fundo no'l trovaremos;
Mais seriam os seus nomes que nos d'ela lemos
Que das flores do campo, na grandeza que sabemos.

43 Desuso o dissemos que eram os frutais
Em que fazem haverem os cantos gerais
Os seus santos Milagres, grandes e principais,
Dos quais organizamos cenas festas caudais.

44. Quero deixar com tantolas aves cantadoras,
As sombras e as águas, se desvão ditas flores;
Quero d'estes frutais tão plenos de doçuras
Fer uns poucos ventos, amigos e senhores.

45. Quero nestas árvores um instante subir
E dos seus milagres alguns escrever;
Que Gloriosa me guie que o possa cumprir,
Ca eu non me atreveria nela a vir.

46. Tê-la-ei pôr milagrosa que o faz gloriosa
Se guiar-me quisera minha nesta coisa;
Mãe, plena de graça, reina poderosa,
Tu que me guias nela, ca sendo piedosa.
 GONZALO DE BERCEO
TRAD. ERIC PONTY

domingo, março 18, 2018

O SONHO DA MORTE - FRANCISCO DE QUEVEDO - TRAD. ERIC PONTY


Farto é que me haja ficado algum discurso depois que veio a V. M., e creio que me deixou este por ser da morte. Não sei se dedico porque me o ampare; levando-se eu, porque o maior desígnio desinteressado é o meu, à emenda do que pode estar escrito com algum desalinho ou imaginado com pouca felicidade. Não me atrevo eu encarecer da invenção por não me acreditar de inventor.

Procurado lhe polir o estilo e sazonar à pluma com a curiosidade. Nem entre a riso me hei olvidado da Doutrina. Se me hão aproveitado o estilo e a diligência hei remitido a censura que V. M. me fizera de se chega a merecer que lhe observe, e poderei eu dizer então que sou infeliz por sonhos. Guarde-me Deus a V. M., que o mesmo fizera eu. Na prisão e na Torre, 6 de abril 1622.

Há Quem O Predizer

Hei querido que a morte acabe meus discursos como as demais coisas; quererá Deus que tenha está boa sorte. Este é o quinto tratado «Sonho do Juízo», al «Alguacil indemonizado», ao «Inferno» e ao «Mundo por de dentro»; não me fica já que sonhar, e sim na visita da morte não desperto, não há que aguardar-me. Se te parecer que já é mui o sonho, perdoa algo a modorra que padeço, e si não, guarda-me o sonho, que eu serei sete dormir das postrimerías. Vale.

 Estão sempre cautelosos e prevenidos as ruinas pensamentos, a desesperação covarde e a tristeza, esperando a colher a só há um desgraçado para mostrasse alentados com ele, própria condição de covardes em que juntamente fazem ostentação de sua malicia e de sua vileza. Por bem que o tenho considerado em outros, me sucedo em minha prisão, pois havendo, o por cariciar meu sentimento o por fazer lisonja a minha melancolia, lido aqueles versos que Lucrécio escreveu com tão animosas palavras, me venci da imaginação, e debaixo do peso de tão ponderadas palavras e rações me deixei cair tão prostrado com a dor do desengano que li, que nem sei si me desmaie advertido o escandalizado. Para que a confissão de minha fraqueza se possa desculpar, escrevo, pela introdução ao meu discurso, a voz do poeta divino, que sonha assim rigorosa com ameaças tão elegantes:

Denique si vocem rerum natura repente
mittat et hoc alicui nostrum sic increpet ipsa:
quid tibi tanto operest, mortalis, quod nimis aegris
luctibus indulges? quid mortem congemis ac fles?
Nam si grata fuit tibi vita anteacta priorque
Et non omnia pertusum congesta quasi in vas
commoda perfluxere atque ingrata interiere:
cur non ut plenus vitae conviva recedis?
Aequo animoque capis securam, stulte, quietem?

Lembrei logo pela memória de dar aviso à Job dando-nos vozes e dizendo: «Homo natus de muliere», etc.:

Ao fim homem nascido
Da mulher fraca, de misérias longínquas,
A breve vida quando flor traída,
De todo bem do descanso alheio,
Que é como sombra vã
Houvesse tarde e nasça à manhã.

Com este conhecimento próprio acompanhava logo o dá que vivemos, dizendo: «Militia est vita hominis super terram», etc.:

A Guerra é a vida do homem
Então vive neste solo,
E suas horas e seus dias
Como às dum jornaleiro.

Eu, que, arrebatado na estima, me vi aos pés dos desenganos rendido, com lastimoso sentimento e com zelo enojado, lhe tomei a Job daquelas palavras da boca com que empeza sua dor ao descobrir-se: «Pereat dies in qua natus sum», etc.:

Perecendo o primeiro dia,
Em que eu nasci na terra,
E à noite em que o varão
Foi-me concebido pereça.

Regressarei daquele dia triste
Em miseráveis trevas,
Não lhe alumbre mais à luz
Nem tenha Deus com ele conta.
Tenebroso torvelinho
Daquela noite ao possuir,
Não este dentre os dias do ano
Nem entre meses há tenham.

Indignos sejam os louvores,
Solitária sempre seja,
Maldiga os que ao dia
Maldizem com voz soberba,
Os que a içarem
Ao Leviatã se brotem,
E com negrumes se escureçam nas estrelas.

Esperavam à luz formosa
E nunca clareza luz vejam,
Nem o nascimento rosado.
Da aurora retornem em perolas,
Porque não se fechou o ventre
Que minha luxuria às portas,
E porque minha sepultura
Não foi meu berço primeiro.

Entre destas demandas e respostas, fatigado e arguido (suspeito que foi cortesia do sonho piedoso mais que natural) me encontrei adormido. Logo que, desembaraçada, à alma se vê ociosa sem à trava dos sentidos exteriores, me embestaram desta maneira na comédia seguinte, e assim se recitaram minhas potências nas escuras sendo eu e as minhas fantasias auditório e teatro.

FRANCISCO DE QUEVEDO
TRAD. ERIC PONTY

sexta-feira, março 16, 2018

VISÔES DE SANTO ANTÔNIO - ERiC PONTY

I

Em matagais, confusos, cortei galho bruma,
No traçado, sedentos, ergui-me em murmúrio:
Era quiçá à voz dilúvio chorou à ramagem,
Uma úvula rubra ou uma essência rasgada.

Sendo algo desde tão distante me carece,
Asilado de grave dor, coberta de hera,
Um grito ensurdecido de imensos sois,
Pelo entreaberto e úmido trovejar sinais.

E, porém, ali, acordar-me das ilusões brenha,
Dum galho de avelã atraiu embaixo meu logro,
Em sua errabunda cor pintar por meu critério.

Como se me buscassem momento às estirpes,
Que me abdiquei, fonte confusas das sombras,
Me segurei lesado pelo bálsamo errante.

II

Pensei uma era feliz Mirtos das coisas,
E ternos acalantos febris ardores,
Doces beiços, expressões enganos,
São cantos qual notas tenebrosas.

Preenchidas macambúzia emoção,
Dissiparam — Senhor! — Daqueles sonhos,
E a efígie triunfal, olhares risonhos,
Que neles sempre, como regi, olha:

Só estiveram —recordações distantes! —
Das minhas visões encerrei e fundi.
Vós ô minhas órfãs já tão antigas!

Quais daquelas sonhadas ilusões,
Dissipando também, Sombras vontade;
E dás que tanto amei, meigas visões.
ERIC PONTY

Minha voz - Vicente Aleixandre – TRAD. ERIC PONTY

Hei nascido numa noite de verão
Entre duas pausas. Fala-me: te ouço.
Hei nascido. Se admitira que na agonia
Representa-me à lua sem esforço.
Hei nascido. Teu nome era destino;
Embaixo um fulgor uma esperança, uma ave.
Aproximar-se, chegar. O mar era um ladrido,
O eco duma mão uma medalha tíbia.
Então são possíveis já às luzes, as caricias, ao pé, o horizonte,
Esse dizer palavras sem sentido
Rodam-nos como escutados, caracóis,
Como lóbulo hiante amanhece
(Ouve, escuta) entre à luz pisada.
Vicente Aleixandre
TRAD. ERIC PONTY

Sonho do Marinheiro - Rafael Alberti - TRAD. ERIC PONTY

Eu, o marinheiro no meu ribeiro,
Posado sobre um cano e doce dum rio
Que de seu braço houve um mar Andaluzia,

Sonho em ser almirante de navio,
A partir do lombo dos mares
Ao sol ardente e da lua fria.

Ô elos do Sul! Ô às polares
Ilhas Nortenhas! Brancas primaveras,
Na nua e hirta sobre os glaciais,

O Corpo de roca e alma de videira!
Do estio tropical, roxo, abrasado,
Embaixo plumeiro azul Palmeira!

Meu sonho, pelo mar condecorado,
Já sobre seu batel, firme, seguro,
De uma verde sereia enamorada.

Concha d’água ali em seu seno escuro.
Arroja-me as ondas, marinheiro:
— Sereiazinha do mar, eu te conjuro!

O Sal da tua gruta, que adorar-te quero,
O Sal de tua gruta, virgem campesina,
Ao plantar-me no peito do teu luzeiro.

Já está flutuando corpo da aurora
Na bandeja azul do oceano
E a cara do céu se coloriu.

De carmim. Deixa o vidro de tua mão
Desolo na alba urna de minha frente,
A Alga de nácar, cantadora em vão.

Embaixo o Vergel azul da corrente.
Gélidos depositários submarinos,
Com o anjo barqueiro de relente.

E da lua d´ agua por padrinhos!
O mar, a terra, o ar, minha sereia,
Enrolado atado aos teus cabelos finos.

E são verdes de tua álgida melena.
Minhas galhardetes brancas atingem bico,
Ô marinheiro! Ante à aurora cheia!

E na rudeza pelo o mar teu caracol!
 Rafael Alberti
TRAD. ERIC PONTY

O PRÍNCIPE DAS TEVRAS - José Maria Alvarez - Museu de Cera - TRAD. ERIC PONTY

Maldição! Estamos alambrados! »
DE UM LIVRO
O limpo céu
Do Sul no calor duma taça
Então escutando Mozart
As telas de Velásquez ou Rousseau
Estas praias na minha calma contemplam
Naquelas que em Homero
Ou com Virgílio hei descoberto tantas vezes
Quem me amarram e eu desejei
Na lealdade que minha alma
Guardou-se em determinadas
Paisagens nos rostos livros
Á luz da cabeceira de minha cama
E nela Stevenson Montaigne
Cervantes Tácito Stendhal
Shakespeare Borges
Meu corpo e meu destino
Que acolhi
Isso que é o tudo

José Maria Alvarez
TRAD.ERIC PONTY

Poesia Vertical - Roberto Juarroz - TRAD. ERIC PONTY

1

Uma rede de observação
Mantêm unido mundo
Não o deixa cair-se.
E ao que eu não separo o que passa com os cegos,
Meus olhos vão a apoiar-se em uma espalda
Que pode ser de deus.

Sem, contudo,
Eles buscam em outra rede, outro fio,
Que anda fechando olhos com um traje emprestado
E pegamos uma chuva já sem só nem um céu.

Meus olhos buscam isso
Que nos faz retirarmos os sapatos
Ao vermos se há algo mais que nos segura debaixo
De inventar um pássaro
Ao averiguar se existe o ar
Ou criar um mundo
Para saber si há deus
Colocamos o guarda chuva
Comprovarmos que existimos.
Roberto Juarroz
TRAD. ERIC PONTY


quinta-feira, março 15, 2018

ARRANHANDO. À MINHA PLUMA - Friedrich Nietzsche - TRAD. ERIC PONTY


Arranhando à minha pluma: Ao demónio!
Estarei eterno condenado a raspagem?
Acontece me que ao lançar num tinteiro
E escrever com os maciços rios de tinta.

Que fluidez, que perfeição, que modo traço!
Daquilo que bem me escrevo, que bem lhe banco!
Talvez sendo à minha escritura lhe falte um fulgor —
E do que? Quem lê o que eu registro?


 Friedrich Nietzsche
TRAD. ERIC PONTY

A Mistura – Oliverio Girondo - TRAD.ERIC PONTY

Não só
A fofa profundidade
Dos ébrios leitos chegamos telúricos entre fanais sérios
Em seus líquenes
Não só o solicito
Nas prófugas
O impar ido
O aonde
O tacto incauto só
Dos acordes abismos dos órgãos sacros do orgasmo
O gosto ao perigo em se brote
Ao rito negro da alba com seu desespero pleno de palhaços
Nem tampouco incensar
Os suspiremos só
Nem o fortuito dia sem
Os autorregular-se em pleno plexo trópico
Nem as exedras menos nem o endédalo
Senão à viva mistura
No total mescla plena
A pura impura mistura que me merma
Os machimbres o almamasa tensa nas obstinações masculinas turcas
A mescla
Se
Misturam-se com que aderi nas minhas pontes.
OLIVERIO GIRONDO
TRAD.ERIC PONTY

quarta-feira, março 07, 2018

DO AMOR - PEDRO SALINAS - TRAD. ERIC PONTY

Quanto no instante te hei olhado
Sem observa- lê, na imagem
Tão exata e tão inacessível
Que te refletiste ao espelho!

«Beija-me», dizes. Te beijei,
E então te beijando penso
Nos frios que serão
Teus lábios no espelho.

«Toda à alma é a ti»,
Murmuras, porém ao peito
Sinto-me qual vazio só
Me legará desta alma
Que não me ofereces.

Esta alma que se vela
Desfazendo das claridades
Em tua forma do espelho.

A Difícil


Nos extremos se acham
De ti, por eles te buscam.
Amar-te: que partir e vir
Em ti mesma de ti mesma!

Ao dares contigo, acerca
Que distante farás de ir!
Amor: distâncias, vaivém
Sem parar.

No meio do caminho, nada.
Não, tua voz não, teu silêncio.
Redondo, terso, sem partisse,
Como ar, são perguntas
Apenas lhe rizam,
Como pedras, perguntas
No fundo se as guardara.
São superfície em silêncio
E eu olhando-me nela.
Nada, teu silêncio, sim.

O todo é teu grito, sim.
Afiado num silêncio,
Acero, raio, seta,
Rasgador, desgarrador,
Que exatidão repentina.

Rompe ao mundo a entranha,
Ao fundo deste mundo acima,
Onde ele chegou, fugacíssimo!
Todo, sim, teu grito, sim.
Porém tua voz não quero.
PEDRO SALINAS
TRAD. ERIC PONTY

A POESIA DOS SÉCULOS DE OURO - TRAD. ERIC PONTY

As poesias dos Séculos de Ouro possuem como atributo mais destacado a convivência dos distintos modelos, tendências e correntes que podemos sintetizar num seguinte quadro:

- Poesia em Metros castelões (octossílabos, hexassílabos e tetrassílabos)

1. De raiz e sabor popular:
2. Villancicos
3. Canções Paralelísticas
4. Romances

– De carácter culto: poesia do Cancioneiro (redondilhas, glosas, canções trovadorescas…)

A Poesia em Metros italianos

– Lírica Petrarquista: Sonetos e canções
– Lírica de inspiração clássica:
Virgiliana: églogas
Horaciana: odes, epístolas

Estas variedades, e outras que nos incumbem neste esquema, se perpetuaram ao largo dos séculos áureos e foram cultivadas pela maior parte de nossos poetas. Quase todos utilizaram indistintamente hendecassílabos e octossílabos, como formas tradicionais castelhanas e moldes italianos, ao que em alguns casos os resultados estéticos em uma ou duma outra corrente foram desiguais.

GIL VICENTE
(Lisboa? Guimaraes? Barcelos? h. 1465 - Lisboa, 1536)

Auto da sibila Cassandra

4
Cantam as lavandeiras

LAVANDEIRAS.

Falcão que se atreve
Com garça guerreira,
Os Perigos espera.
Falcão que se voa
Com garça a porfia,
Caçar a queria
E não a receba.
Mas quem não se vela
Da garça guerreira,
Os perigos espera. […]

CLITA.
A caça de amor
É de altaneira,
Trabalhos de dia,
De noite faz dor.
Falcão caçador
Com garça tão fera,
Os perigos espera.
5
Canta Cassandra.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.
Mais quero viver segura
Nesta serra minha soltura,
Que não estar ventura
Se casarei bem ou não.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.
Mãe, não serei casada
Por não ver vida cansada,
O quiçá mal-empregada
A graça que Deus me deu.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.
Não será nem é nascido
Tal para ser meu marido;
E, pois, que tenho sabido
Que a flor eu me a só.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.

6
Acabada assim a adoração, cantam a seguinte cantiga que fez o autor e a qual ele mesmo compôs a música
Mui graciosa é a donzela,
Como é bela e formosa!
Diz ao teu, marinheiro
Que nos templos vivias,
Se o templo a vela
A estrela é tão bela.
Diz teu, o cavaleiro
Que as armas vestias,
Se o cavalo as armas
A guerra é tão bela.

Fray Luis de León
Nasceu Belmonte de Tajo (Cuenca), em 1527 o 1528

I
A Vida Retirada

Que descansada vida
A de que ouve o mundanal ruído,
E segue a escondida
Senda, por onde hão ido
Os poucos sábios que no mundo hão sido!
Que não lhe enturva o peito
Dos soberbos grandes estado,
Nem do doirado coberto
Se admira, fabricado
Do sábio Mouro, em roupa sustentado.
Não cura sem a Fama
Canta com voz seu nome pregoeira,
Nem cura si adultera
Na língua lisonjeira
Do que condena a verdade sincera.
Que presta ao meu contento
Se sou do vão dedo assinalado;
Sem na busca d’este vento
Ando desalentado
Com ânsias vivas, com mortal cuidado?
Ô monte, ô fonte, ô rio,
Ô secreto seguro, deleitoso!
Roto quase ao navio,
Ao vosso alimento repousa
Esquivo deste mar tempestuoso.
Um não rompido sonho,
Um dia puro, alegre, livre quero;
Não quero ver o aceno
Vagamente severo
De quem ao sangue ensalma, o dinheiro.
Desperta-me as aves
Com seu cantar saboroso não aprendido,
Não os cuidados graves
De que é sempre seguido
Ele que ao aceno arbítrio está atendido.
Viver quero comigo;
Gozar quero do bem que devo ao céu,
A consolar, sem testemunha,
O Livre de amor, do zelo,
Do ódio, de esperanças, de receio.
Del monte na ladeira
Por minha mão plantado tenho um horto,
Que com a primavera,
De bela flor coberto,
Já demostra na esperança o fruto certo.
E como codiciosa
Por ver e acrescentar sua formosura,
Desde a cobre airosa
Uma fonte pura
Há chegar correndo se apressura.
E logo, sossegada,
Ao passo entre árvores torcendo,
No chão da caminhada,
De verdura vestindo
E com diversas flores já espargendo.
O ar ao horto orea
E oferece mil odores ao sentido;
Ás árvores meneiam
Com um manso ruído,
Que douro e do cetro pôs olvido
Tenha-se seu tesouro
Os que dum falso ramo se confiam:
Não é meu ver o choro
Dos que desconfiam
Quando o cirzo e o vento Sudeste porfiam.
A combatida antena
Cruze, na cega noite ao claro dia
Se torna; ao céu sonha
Confusa vozeria,
E ao mar enriquecem a porfia.
A minha uma pobrezinha
Mesa, de amável paz bem abastada,
Me baste; e a vasilha
De fino ouro lavrada
Sendo de quem ao mar não teme airada.
E então miserável
Mente se estão os outros abrasando
Com sede insaciável
Do perigoso mando,
Tendo eu a sombra este cantando.
Á sombra alargar-se,
De Hidra e Lauro eterno coronado
Posto ao atento ouvido
Ao som doce, acordado,
Do plectro sabiamente meneado.

Garcilaso de la Vega, 1574


COPLA II

A CANÇÃO, FAZENDO-SE CASADO SUA DAMA

A Culpa deve ser quereis,
Segundo que em mim haveis;
Mais adiante o pagareis
De não saberem conhece-los,
Por mal que me conheceis
Por querer, ser perdido
Pensava, que não há culpado;
Mais que todos haveis sido,
Assim me haveis mostrado
Do que o tenho bem sabido.
Quem pudesse não os quereis
Tanto como vós sabeis,
Por folgar-me que pagueis
O que não hão de conhece-los
Com do que não conheceis!

Jorge Manrique

A época de maior atividade dos Manrique se situa entre o final do reinado de Juan II de Castelã e o começo dos dois Reis Católicos, centrando-se nos tempos turbulentos de Enrique IV.

DE DON JORGE MANRIQUE QUEIXANDO-SE DO DEUS DO AMOR

Ô mui alto Deus do Amor,
Por quem minha vida se guia!
Como sofres teu, senhor,
Sendo justo julgador,
Em tua lei tal erigia?
Que se perda o que serviu,
Que se olvide o servido,
Que viva quem enganou,
Que morra quem bem amou,
Que valga no amor fingido?

Pois que tais sem rações
Conscientes passar assim,
Suplico-te em perdões
Minha língua, se com paixões
Difiro-lhe maus de ti.
Que não sou eu que vós dizeis,
Senão tu, que me fizestes
As obras como inimigo:
Tendo-me por teu amigo,
Me trocaste e me vendeste.
Se fores Deus de verdade.

Por que consentes mentiras?
Se tens em ti bondade,
Por que sofres tal maldade?
O que aproveitam tuas iras,
Tuas sanhas tão espantosas
Com que castigas e feres?
Tuas forças tão poderosas
—Pois comportas tais coisas—
De para quando as queiras?

FRANCISCO DE QUEVEDO
POEMAS METAFÍSICOS, MORAIS, RELIGIOSOS E HERÒICOS


Representa-se na brevidade do que se vive e do qual nada parece do que se viveu.

Ah da vida! … Nada me responde?
Aqui do antanho que hei vivido!
Fortuna mui tempos há mordido,
Horas minhas loucuras as esconde.
Que sem poder saber como nem onde
A saúde e a idade se hão ruído!

A falta à vida, assistir do vivido,
E não há calamidade não me ronde.
Haver fui; amanhã não hei chegado;
Hoje se está indo sem parar um ponto:
Sou um foi e um será e um é cansado.

Em do hoje e amanhã haverá, junto
Panos e mortalha, e hei quedado
Presentes sucessões de defunto.

LUIS DE GÓNGORA

Córdoba, à pátria de Séneca e Lucano, vê nascer em 1561 a Luis de Góngora, filho dum prestigioso jurista de família nobre ao que não gozasse duma posição económica desafogada.

Na técnica do soneto supera aos seus contemporâneos. Desde os mais remotos, de 1582, se observa, junto à influência petrarquista (imita aos italianos Tasso, Ariosto e Sannazaro), sua fixação ao original no léxico, as imagens utilizadas e colorido, sobre todo quando expressa o sentimento amoroso, bem, ou seja, a celebrar seu gozo como a cantar o fracasso, seu medo, suas dúvidas ou na sua decepção como amante.

II
DE SAN LORENZO EL REAL DEL ESCORIAL (1589)

Sacros, altos, dourados capitães,
Que as nuvens borrais seus arrebóis,
Febo os temeu por mais luzentes sois,
E deste céu por gigantes mais cruéis.

Depois teus raios, Júpiter; não zeles
E teus, Sol; dum templo são faróis,
Que ao maior mártir dos espanhóis
Ergueu lhes o maior Rei um dos fiéis,

Religiosa grandeza do Monarca
Em cuja destra real ao Novo Mundo
Abrevia, e ao Oriente se lhe humilha.

Perdoe-lhe o tempo, lisonjeei à Parca,
A beldade de esta Oitava Maravilha,
Os anos de este Salomão fez Segundo.

III
A LA GRANDEZA Y DILATACIÓN DE MADRID (1610)

Nilo não sofras margens, nem muros
Madrid, ô peregrino, tu que passas,
Que dás menor inundação das casas
Nem há um os campos Tejo estão seguros.

Émula ao virem, séculos futuros,
De Menfis não, que ao término le tasas;
Do tempo sim, que profundas destas crenças,
Não são em vão pedernales duros.

Ô Dossel destes reis, de filhos estirpe
Há sido e sendo zodíaco do luzente
Da beldade, do teatro de Fortuna.

Á inveja daqui veneno dente
Alimenta só, privanças importunas.
Caminhe em tua paz, referir tua gente.

TRAD. ERIC PONTY

A IMITAÇÃO DA NOSSA SENHORA LUA - JULES LAFORGUE - TRAD. ERIC PONTY

UMA PALAVRINHA AO PÔR DO SOL

Ô Sol! É Militar coberto de medalhas e pontas,
O fizeste sem à classe, saberás que Vestais,
Há quem há Lua, de falaz dum olhar de felina,
Sendo dum roseiral divinal duma Única Catedral.

Saberás que dos Pierrôs, falenas lhe dominaram,
Ninfeias brancas, donde Gomorra jaze adormecida,
E dos Bem-aventurados que pascidos neste Éden
São renúncias, sempre. Primaverais, te execram!

E que te hão retirado os teus peculiares desprezos,
Segunda, Perdulário, Mascarra, Rastaqueras
Sendo esta cascavel doirada, que ti pôs tão reles
Sóis feita desta pobre Terra e tua ufana lunar.

Andas perseguindo dando crepúsculos inúteis
Nos dias desta ressaca das Festas Nacionais,
Adelgaçando estação ao soltares teus dramas,
Nessas grandes Apoteoses ao fins Umbilicais.

Achegas já, Febo! Deverias, deus do mal Despertar,
Observe-nos este Port-Royal que dos divinos estetas,
Que em teu Decamerão inventaram à luz da Lua
Diziam postar qualquer preço, sem mais, à tua cabeceira.

Ti ficaras muitos dias por durar, só eu percebi;
Porém cresceste na tribo das antigas tradições,
Do «Absoluto, ao que? », sonhando-se Amor e Arte,
Neste aglomerado Inorgânico que foste existir.

Ampara por hoje, vegete, ausente-se conformamos
Com o refregaste nas colinas de Teu Papanatismo,
Isto que o Homem já te avisaste na frente do Poente,
Aposto há quem o jamais lhes tiveras desconfiado.

— Enterraste que lhe diziam ser duma frase estupenda,
Deste osso vistoso, porém, sem essência nenhuma,
Muita conversa vã, porém, tudo não sejais teatro!
A Pureza Febo, sem mais! Os comentários sobejam.

Ô Fantasma do Tempo, onde. Ser, foste castigado,
Com  «Febo, percorrei já! » Contestarás teu retorno
És deste antigo cresceste et multiplicamini,
Para ir-se inocular-se na tua frescura Lunar!

AS LITANIAS DAS QUARTOS LUAS

Ô Lua tão santificada
Quais destas Insônias,

Á branquidão do medalhão
Dos endêmicos,

Ah Estrela fóssil,
Que tudo nos exila,

Esmeralda Sepultura
De Salambó,

És sóis só Una guardiã
Dos Profundos Mistérios,

Ô Madonna e Ô Miss
Sóis Diana-Artemisa,

Sóis Vigilante Santificada
Destas nossas Orgias,

Esta tua má avantesma
Ti amargurarás, só.

Ah, Vós, ô Prestados Sóis Dama
Que botaste em nossas terras,

Sendo o Filtro nos açodar
Destas nossas alucinações,

É Sóis Bovina e Roseiral,
Destes Salmos Derradeiros,

Na formosura teu olhar de felina
Sendo quais das Nossas redenções.

Se constituíres no Uno socorro
Destas nossas unas crenças,

Sóis qual brancura do edredom
Deste nosso Grande Perdão!
JULES LAFORGUE
TRAD. ERIC PONTY

terça-feira, março 06, 2018

PAUL VERLAINE - Poemas - TRAD. ERIC PONTY

NA CLAREZA DA LUA

Vossa alma é qual uma vista esquisita,
Qual querem subjugar disfarces e das danças,
Tocam teus alaúdes, giram, quase tristes,
Debaixo logram fantásticos disfarces.

E, entretanto, vão cantando, em tom menor,
Do amor vitorioso e vida desta cumprida,
Não tem o aspecto crer em toda tua desgraça,

Tua canção se perdeu no clarão da Lua,
E num claro da lua formoso fez tal paz,
Onde, dentre ramagens, sonham todos pássaros.

E soluçaram em êxtases em todas fontes,
Com frescos jogos d’águas destes mármores.

O AMOR POR SONHOS

No vento noturno derrubou daquele Amor
Nos sorriam mais misteriosos do parque,
Então iam traçando malignamente teu arco,
E cujo aspecto tanto nos intrigara um dia.

O vento, doutra noite, derrubou. E o vento
Dum dia aglomerar pó do mármore. Triste
Resultou o pedestal, donde um nome de artista,
Apenas se decifra à sombra desta tua árvore.

É tristeza ver-te erguida e só do pedestal,
Chegam e vão sombrios em teus pensamentos
E dentre meus sonhos, há um pesar profundo,

Anunciava-se um prevenir ermo dum fatal.
É triste, sim. E tu mesma resultas comovida,
Ante tal quadro, ao do qual teus olhos frívolos
Sigam a mariposa que, ouro e púrpura, voa
E por entre dos resíduos conservam passeio.

EM SORDINA

Tranquilas à penumbra
Proporcionam os ramos,
Encharcam nosso amor
Dum profundo silêncio.

Fundam-se almas, latidos
Sentidos exaltados
Na vaga languidez
Dos arbustos e pinheiros.

Entornam, pois, teu olhar,
Dos braços põem num peito,
Coração fez dormido.

Lançam vagos anéis,
Deixem persuadir,
Sopro avassalador,
Teus pés vêm rezar
Vaivém roxo céspede.

Quando, pompa, à tarde
Baixo negros robes,
Voz em desalento,
Entoam ao teu cantar.

COLÓQUIO SENTIMENTAL

Por daquele velho parque, ermo glacial,
Das sombras vão cruzar faz-se do momento.
Daquele velho parque tão ermo e glacial,
Os Fantasmas lhe evocam este teu passado.

— Recordas, todavia, os êxtases de antes?
— Há vem, agora, careceria recordá-los?
— Bate teu coração só ouvir meu nome?
É minha alma, teu sonho, que vês? — Não.

— Ah, gentil dia indizível alegria,
Nos dois uníamos bocas! —Poderia ser.
— Quando era céu azul, esperança infinita!
— Espera partiu, rumo aos céus nublados.

De Ombro com ombro se iam, da Avena insana,
E tão só noite ouviam entre tuas palavras.

PAUL VERLAINE
TRAD. ERIC PONTY

domingo, março 04, 2018

UM CONTO DE NATAL - Ramón María del Valle-Inclán - TRAD. ERIC PONTY



Era numa montanha galega. Eu estudava então gramática latina com o senhor ar cipreste do céltico, e vivia castigado no litoral. Há um me veio num eco da janela, choroso e suspirante. Minhas lágrimas caíam silenciosas sobre a gramática da neblina, aberta em cima do alféizar. Era o dia de Natal, e o senhor ar cipreste havia-me condenado a não acenar até que suspendesse daquela terrível conjugação: «Fero, fers, tuli, latum».

Eu, perdido em toda esperança de consegui-lo, e disposto há algum como um santo ermitão, me distraía admirando o horto, donde cantava um Mirto que recorria aos saltos dos ramos duma nogueira centenária. As nuvens, pesadas e plúmbeas, iam a congregar-se sobre a serra de céticos num horizonte d´agua, e os pastores, dando vozes a seus rebanhos, abaixavam presunçosos pelos caminhos, encapuzados em suas capas de juncos.

No arco íris cobria o horto, e os nodais escuros e os mirtos verdes e úmidos pareciam tremer em um raio de alaranja luz.

Ao cair à tarde, o senhor ar cipreste atravessou o horto: andava encurvado embaixo duma grande guarda-chuva azul: se revolveu desde a cancela, e vendo-me na janela me chamou com a mão. Eu reclinei temeroso. Ele me disse:

 — Há aprendido isso?
— Não, senhor.
— Por que?
— Porque é mui difícil.
O senhor ar cipreste sorrio bondoso.
— Está bem: amanhã o aprenderás. Agora acompanha-me a igreja.

Me conduziu com a mão para resguardar-me com guarda chuvas, pois principiava a cair duma ligeira chuvinha, e nos achamos o caminho adiante.

A Igreja estava acerca. Tinha uma porta chata de estilo românico, e, segundo dizia o senhor ar cipreste, era fundação da rainha dona Urraca.

Entramos. Eu fiquei só no presbitério, o senhor arcebispo passou a sacristia falando com o acólito, recomendando-lhe que estivesse todo disposto para a Missa do Galo.

Pouco depois revolvíamos a sair.
Já não chova, e pálido crescente da lua começava a luzir no céu triste e invernal.

 O caminho estava escuro, era um caminho de ferradura, pedregoso e com grandes charcos. De largo em largo falávamos de algum rapaz aldeão que deixava beber pacificamente junta cansada de seus bois.

Os pastores que retornavam do monte trazendo os rebanhos por distante, se detinham nas redondezas e arreavam dum lado suas ovelhas para deixar-nos passo. Todos saudavam com o Cristianismo:

 — Bem-dito seja Deus!
— Alado seja!
— Siga mui orgulhoso o senhor ar cipreste em sua companhia.
— Amém!

Quando chegamos ao Peitoral era noite cerrada. Micaela, a sobrinha do senhor ar cipreste, transpunha-se dispondo à cena. Nos sentamos na cozinha ao amor do lume: Micaela me olhou sorrindo:

— Hoje não havendo estudo, verdade?
— Hoje, não.
— Ar renegados latim, verdade?
— Verdade!

 O Senhor arcipreste nos interrompeu severamente:

E quando já cobrava alento o senhor ar cipreste para edificarmos com uma larga plástica cheia de ciência teológica, sonharam embaixo da janela alegres conchas e buliçosos pandeiros. Uma voz cantou nas trevas noturnas:

Nós aqui viemos,
Nós aqui chegamos,
Sim nos dão licença
Nós aqui cantaremos!

O Senhor ar cipreste lhes fraquejou por si mesmo a porta, e um corro de zagais invadiu aquela cozinha sempre hospedeira. Viam duma aldeia distante; ao som dos pandeiros que lhe cantaram:

Falade vindo abaixo,
Andante passinho,
Porque não despertem
O nosso menino,
O nosso menino,
O nosso Jesus,
Que adormece nas palhas
Sem olhar-se e Sem luz.

Silenciaram um momento, e entre o júbilo das conchas e dos pandeiros retornaram a cantar:

Se não fora porque tenho
Esta cara de aldeão,
Dar-lhe-ei quatro beijinhos
Nessa cara de manteiga.
Vamos daqui para aldeia
Que xa vimos galantear,
Está Jesus a adormecer
E podemo-lo despertar.

Atrás havia cantado, beberam largamente daquele vinho agrimo, fresco e são ao Senhor ar cipreste balançava, e refocilados e quentes, foram-se fazendo sonar as conchas e os pandeiros. Há um ouvíamos o coxeio de suas madrastas nas escadarias do pátio, quando duma voz entoou:

Esta casa feita de pedra
O diabo ergueu-lhes um ardil,
Para que dormissem juntos
Dum cipreste e sua sobrinha.

Ao ouvir o casal, o Senhor ar cipreste estranhou o aceno. Micaela dirigindo colérica, e abandonando à vasilha donde erva clássica compota de maças, correu pela janela ressoando:

— Mal falados! … Mal ensinados! … Assim vos salgais ao caminho lobos raivosos!

O senhor ar cipreste, sem despregar os lábios, se passava picando um cigarro com a unha e refregando o pó entre as palmas. Ao terminar, chegou-se ao fogo e retirou um carvão, que lhe serviu de candeia. Então se fixou em meus seus olhos enfocados embaixo das cedidas flautas crescidas. Eu tremi. Senhor ar cipreste me disse:

— Que fizeste? Andas a buscar a neblina.

Saiu suspirando. Assim terminou minha Noite de Natal na casa do senhor ar cipreste de céltico, Q. S. G. H

 Ramón María del Valle-Inclán
 TRAD. ERIC PONTY

quinta-feira, março 01, 2018

O Paraíso Perdido - Rafael Alberti - TRAD. ERIC PONTY

Por Meio destes séculos,
Pelo Nada do Mundo,
Sem sonho, hei buscar.

Atrás mim, imperceptível,
E sem rosar-me ombros,
Meu anjo morto, vigiar.

Onde ti encontrar Paraíso,
Á Sombra, teu há estado?
Perguntas com ao silêncio.

Cidades sem resposta,
Rios sem fala, cumpres
Sem ecos, mares mudos.

Nada sabeis. Homens
Filhos, pé, na orelha
Parados nas tumbas,

Me ignoram. Aves tristes,
Dos cantos petrificados
Em êxtases do teu rumo,

Os cegos. Não sabem nada.
Sem sol, ventos antigos,
Estão inertes, nas léguas.

É por andar, levantando
Calcinados, caindo-se
Espadas, pouco disseram.

Diluídos, sem forma
Verdade se ocultaram,
Ouvem-se mim dos céus.

Já está fim da Terra,
Sobre o último fio,
Resvalar teus Olhos,

Morta minha esperança,
Este é dum pórtico Verde
Buscar nas negras samis.

Ô boquete das Sombras!
O Ervedeiro do Mundo!
Que confusão Secular!

Atrás, atrás! Que espanto
E das trevas sem vós!
É Perdida minha alma!

— Anjo morto, despertais.
Onde estás? Iluminais
Com teu raio retorno.

Silêncio. Mais silêncio.
Estão imóveis pulsos
Deste sem-fim à noite.

O Paraíso perdido!
Perdido hei buscar-te,
Eu, sem luz sempre.
Rafael Alberti
TRAD. ERIC PONTY

A JACTÃNCIA DE QUIETUDE - Jorge Luis Borges - TRAD. ERIC PONTY

Escrituras luz pregadas à sombra,
Mais insignes meteoros.
Supina cidade pasmosa arreceia sobre o campo.
Vestem minha vida de minha morte,
Esbocei ousar e quisera entender-nos.
Sendo que se fez do dia ávido laço ar.

A noite de trégua ira do ferro, finda assaltar.
Diz humanidade.
Minha caridade percebe
Somos vozes mesma penúria.
Graduados à pátria.

Minha pátria se fez ruído da guitarra,
Duns retratos velha espada,
Oração aberta sauzal crepúsculos.
Do tempo fizeram-se existir.

Sendo há mais silenciosa minha sombra,
Cortando tropel içado à usura.
Imperiosos, inusitados,
Sendo dignos da manhã.

Meu nome é dum alguém é dum qualquer.
Deu-se qual num lentor, quem houvera
De longínquos não se anseiam acercar.
JORGE LUIS BORGES
TRAD. ERIC PONTY

quarta-feira, fevereiro 28, 2018

SAUDAÇÃO - STEPHANE MALLARME - TRAD. ERIC PONTY

NADA, semelha casta espuma castidade,
Que não se designou senão dum só cimo;
Numa tal submersão tão longínquos rebanhos,
Tornaram-se sereias, muitas já tão contrárias.

Navegar, então amigos meus, reunidos,
Estava sobre espuma; sóis fastuosos frente,
Confinados folhagens raios tecidos invernos.

Ao menos da formosa ebriedade incita.
Nem sem sequer eu mandar-lhe, imersão,
Ao dirigir-me já em pé duma só Saudação:

— É Solidão, Arrecife, esta tua Estrela! —
Tudo feito há já lhe fazer jus dimensão,
Sendo alvo afã qual vossa justa lucidez.
STEPHANE MALLARME
TRAD. ERIC PONTY