Pesquisar este blog

domingo, março 04, 2018

UM CONTO DE NATAL - Ramón María del Valle-Inclán - TRAD. ERIC PONTY



Era numa montanha galega. Eu estudava então gramática latina com o senhor ar cipreste do céltico, e vivia castigado no litoral. Há um me veio num eco da janela, choroso e suspirante. Minhas lágrimas caíam silenciosas sobre a gramática da neblina, aberta em cima do alféizar. Era o dia de Natal, e o senhor ar cipreste havia-me condenado a não acenar até que suspendesse daquela terrível conjugação: «Fero, fers, tuli, latum».

Eu, perdido em toda esperança de consegui-lo, e disposto há algum como um santo ermitão, me distraía admirando o horto, donde cantava um Mirto que recorria aos saltos dos ramos duma nogueira centenária. As nuvens, pesadas e plúmbeas, iam a congregar-se sobre a serra de céticos num horizonte d´agua, e os pastores, dando vozes a seus rebanhos, abaixavam presunçosos pelos caminhos, encapuzados em suas capas de juncos.

No arco íris cobria o horto, e os nodais escuros e os mirtos verdes e úmidos pareciam tremer em um raio de alaranja luz.

Ao cair à tarde, o senhor ar cipreste atravessou o horto: andava encurvado embaixo duma grande guarda-chuva azul: se revolveu desde a cancela, e vendo-me na janela me chamou com a mão. Eu reclinei temeroso. Ele me disse:

 — Há aprendido isso?
— Não, senhor.
— Por que?
— Porque é mui difícil.
O senhor ar cipreste sorrio bondoso.
— Está bem: amanhã o aprenderás. Agora acompanha-me a igreja.

Me conduziu com a mão para resguardar-me com guarda chuvas, pois principiava a cair duma ligeira chuvinha, e nos achamos o caminho adiante.

A Igreja estava acerca. Tinha uma porta chata de estilo românico, e, segundo dizia o senhor ar cipreste, era fundação da rainha dona Urraca.

Entramos. Eu fiquei só no presbitério, o senhor arcebispo passou a sacristia falando com o acólito, recomendando-lhe que estivesse todo disposto para a Missa do Galo.

Pouco depois revolvíamos a sair.
Já não chova, e pálido crescente da lua começava a luzir no céu triste e invernal.

 O caminho estava escuro, era um caminho de ferradura, pedregoso e com grandes charcos. De largo em largo falávamos de algum rapaz aldeão que deixava beber pacificamente junta cansada de seus bois.

Os pastores que retornavam do monte trazendo os rebanhos por distante, se detinham nas redondezas e arreavam dum lado suas ovelhas para deixar-nos passo. Todos saudavam com o Cristianismo:

 — Bem-dito seja Deus!
— Alado seja!
— Siga mui orgulhoso o senhor ar cipreste em sua companhia.
— Amém!

Quando chegamos ao Peitoral era noite cerrada. Micaela, a sobrinha do senhor ar cipreste, transpunha-se dispondo à cena. Nos sentamos na cozinha ao amor do lume: Micaela me olhou sorrindo:

— Hoje não havendo estudo, verdade?
— Hoje, não.
— Ar renegados latim, verdade?
— Verdade!

 O Senhor arcipreste nos interrompeu severamente:

E quando já cobrava alento o senhor ar cipreste para edificarmos com uma larga plástica cheia de ciência teológica, sonharam embaixo da janela alegres conchas e buliçosos pandeiros. Uma voz cantou nas trevas noturnas:

Nós aqui viemos,
Nós aqui chegamos,
Sim nos dão licença
Nós aqui cantaremos!

O Senhor ar cipreste lhes fraquejou por si mesmo a porta, e um corro de zagais invadiu aquela cozinha sempre hospedeira. Viam duma aldeia distante; ao som dos pandeiros que lhe cantaram:

Falade vindo abaixo,
Andante passinho,
Porque não despertem
O nosso menino,
O nosso menino,
O nosso Jesus,
Que adormece nas palhas
Sem olhar-se e Sem luz.

Silenciaram um momento, e entre o júbilo das conchas e dos pandeiros retornaram a cantar:

Se não fora porque tenho
Esta cara de aldeão,
Dar-lhe-ei quatro beijinhos
Nessa cara de manteiga.
Vamos daqui para aldeia
Que xa vimos galantear,
Está Jesus a adormecer
E podemo-lo despertar.

Atrás havia cantado, beberam largamente daquele vinho agrimo, fresco e são ao Senhor ar cipreste balançava, e refocilados e quentes, foram-se fazendo sonar as conchas e os pandeiros. Há um ouvíamos o coxeio de suas madrastas nas escadarias do pátio, quando duma voz entoou:

Esta casa feita de pedra
O diabo ergueu-lhes um ardil,
Para que dormissem juntos
Dum cipreste e sua sobrinha.

Ao ouvir o casal, o Senhor ar cipreste estranhou o aceno. Micaela dirigindo colérica, e abandonando à vasilha donde erva clássica compota de maças, correu pela janela ressoando:

— Mal falados! … Mal ensinados! … Assim vos salgais ao caminho lobos raivosos!

O senhor ar cipreste, sem despregar os lábios, se passava picando um cigarro com a unha e refregando o pó entre as palmas. Ao terminar, chegou-se ao fogo e retirou um carvão, que lhe serviu de candeia. Então se fixou em meus seus olhos enfocados embaixo das cedidas flautas crescidas. Eu tremi. Senhor ar cipreste me disse:

— Que fizeste? Andas a buscar a neblina.

Saiu suspirando. Assim terminou minha Noite de Natal na casa do senhor ar cipreste de céltico, Q. S. G. H

 Ramón María del Valle-Inclán
 TRAD. ERIC PONTY

Nenhum comentário: