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quarta-feira, março 07, 2018

A POESIA DOS SÉCULOS DE OURO - TRAD. ERIC PONTY

As poesias dos Séculos de Ouro possuem como atributo mais destacado a convivência dos distintos modelos, tendências e correntes que podemos sintetizar num seguinte quadro:

- Poesia em Metros castelões (octossílabos, hexassílabos e tetrassílabos)

1. De raiz e sabor popular:
2. Villancicos
3. Canções Paralelísticas
4. Romances

– De carácter culto: poesia do Cancioneiro (redondilhas, glosas, canções trovadorescas…)

A Poesia em Metros italianos

– Lírica Petrarquista: Sonetos e canções
– Lírica de inspiração clássica:
Virgiliana: églogas
Horaciana: odes, epístolas

Estas variedades, e outras que nos incumbem neste esquema, se perpetuaram ao largo dos séculos áureos e foram cultivadas pela maior parte de nossos poetas. Quase todos utilizaram indistintamente hendecassílabos e octossílabos, como formas tradicionais castelhanas e moldes italianos, ao que em alguns casos os resultados estéticos em uma ou duma outra corrente foram desiguais.

GIL VICENTE
(Lisboa? Guimaraes? Barcelos? h. 1465 - Lisboa, 1536)

Auto da sibila Cassandra

4
Cantam as lavandeiras

LAVANDEIRAS.

Falcão que se atreve
Com garça guerreira,
Os Perigos espera.
Falcão que se voa
Com garça a porfia,
Caçar a queria
E não a receba.
Mas quem não se vela
Da garça guerreira,
Os perigos espera. […]

CLITA.
A caça de amor
É de altaneira,
Trabalhos de dia,
De noite faz dor.
Falcão caçador
Com garça tão fera,
Os perigos espera.
5
Canta Cassandra.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.
Mais quero viver segura
Nesta serra minha soltura,
Que não estar ventura
Se casarei bem ou não.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.
Mãe, não serei casada
Por não ver vida cansada,
O quiçá mal-empregada
A graça que Deus me deu.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.
Não será nem é nascido
Tal para ser meu marido;
E, pois, que tenho sabido
Que a flor eu me a só.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.

6
Acabada assim a adoração, cantam a seguinte cantiga que fez o autor e a qual ele mesmo compôs a música
Mui graciosa é a donzela,
Como é bela e formosa!
Diz ao teu, marinheiro
Que nos templos vivias,
Se o templo a vela
A estrela é tão bela.
Diz teu, o cavaleiro
Que as armas vestias,
Se o cavalo as armas
A guerra é tão bela.

Fray Luis de León
Nasceu Belmonte de Tajo (Cuenca), em 1527 o 1528

I
A Vida Retirada

Que descansada vida
A de que ouve o mundanal ruído,
E segue a escondida
Senda, por onde hão ido
Os poucos sábios que no mundo hão sido!
Que não lhe enturva o peito
Dos soberbos grandes estado,
Nem do doirado coberto
Se admira, fabricado
Do sábio Mouro, em roupa sustentado.
Não cura sem a Fama
Canta com voz seu nome pregoeira,
Nem cura si adultera
Na língua lisonjeira
Do que condena a verdade sincera.
Que presta ao meu contento
Se sou do vão dedo assinalado;
Sem na busca d’este vento
Ando desalentado
Com ânsias vivas, com mortal cuidado?
Ô monte, ô fonte, ô rio,
Ô secreto seguro, deleitoso!
Roto quase ao navio,
Ao vosso alimento repousa
Esquivo deste mar tempestuoso.
Um não rompido sonho,
Um dia puro, alegre, livre quero;
Não quero ver o aceno
Vagamente severo
De quem ao sangue ensalma, o dinheiro.
Desperta-me as aves
Com seu cantar saboroso não aprendido,
Não os cuidados graves
De que é sempre seguido
Ele que ao aceno arbítrio está atendido.
Viver quero comigo;
Gozar quero do bem que devo ao céu,
A consolar, sem testemunha,
O Livre de amor, do zelo,
Do ódio, de esperanças, de receio.
Del monte na ladeira
Por minha mão plantado tenho um horto,
Que com a primavera,
De bela flor coberto,
Já demostra na esperança o fruto certo.
E como codiciosa
Por ver e acrescentar sua formosura,
Desde a cobre airosa
Uma fonte pura
Há chegar correndo se apressura.
E logo, sossegada,
Ao passo entre árvores torcendo,
No chão da caminhada,
De verdura vestindo
E com diversas flores já espargendo.
O ar ao horto orea
E oferece mil odores ao sentido;
Ás árvores meneiam
Com um manso ruído,
Que douro e do cetro pôs olvido
Tenha-se seu tesouro
Os que dum falso ramo se confiam:
Não é meu ver o choro
Dos que desconfiam
Quando o cirzo e o vento Sudeste porfiam.
A combatida antena
Cruze, na cega noite ao claro dia
Se torna; ao céu sonha
Confusa vozeria,
E ao mar enriquecem a porfia.
A minha uma pobrezinha
Mesa, de amável paz bem abastada,
Me baste; e a vasilha
De fino ouro lavrada
Sendo de quem ao mar não teme airada.
E então miserável
Mente se estão os outros abrasando
Com sede insaciável
Do perigoso mando,
Tendo eu a sombra este cantando.
Á sombra alargar-se,
De Hidra e Lauro eterno coronado
Posto ao atento ouvido
Ao som doce, acordado,
Do plectro sabiamente meneado.

Garcilaso de la Vega, 1574


COPLA II

A CANÇÃO, FAZENDO-SE CASADO SUA DAMA

A Culpa deve ser quereis,
Segundo que em mim haveis;
Mais adiante o pagareis
De não saberem conhece-los,
Por mal que me conheceis
Por querer, ser perdido
Pensava, que não há culpado;
Mais que todos haveis sido,
Assim me haveis mostrado
Do que o tenho bem sabido.
Quem pudesse não os quereis
Tanto como vós sabeis,
Por folgar-me que pagueis
O que não hão de conhece-los
Com do que não conheceis!

Jorge Manrique

A época de maior atividade dos Manrique se situa entre o final do reinado de Juan II de Castelã e o começo dos dois Reis Católicos, centrando-se nos tempos turbulentos de Enrique IV.

DE DON JORGE MANRIQUE QUEIXANDO-SE DO DEUS DO AMOR

Ô mui alto Deus do Amor,
Por quem minha vida se guia!
Como sofres teu, senhor,
Sendo justo julgador,
Em tua lei tal erigia?
Que se perda o que serviu,
Que se olvide o servido,
Que viva quem enganou,
Que morra quem bem amou,
Que valga no amor fingido?

Pois que tais sem rações
Conscientes passar assim,
Suplico-te em perdões
Minha língua, se com paixões
Difiro-lhe maus de ti.
Que não sou eu que vós dizeis,
Senão tu, que me fizestes
As obras como inimigo:
Tendo-me por teu amigo,
Me trocaste e me vendeste.
Se fores Deus de verdade.

Por que consentes mentiras?
Se tens em ti bondade,
Por que sofres tal maldade?
O que aproveitam tuas iras,
Tuas sanhas tão espantosas
Com que castigas e feres?
Tuas forças tão poderosas
—Pois comportas tais coisas—
De para quando as queiras?

FRANCISCO DE QUEVEDO
POEMAS METAFÍSICOS, MORAIS, RELIGIOSOS E HERÒICOS


Representa-se na brevidade do que se vive e do qual nada parece do que se viveu.

Ah da vida! … Nada me responde?
Aqui do antanho que hei vivido!
Fortuna mui tempos há mordido,
Horas minhas loucuras as esconde.
Que sem poder saber como nem onde
A saúde e a idade se hão ruído!

A falta à vida, assistir do vivido,
E não há calamidade não me ronde.
Haver fui; amanhã não hei chegado;
Hoje se está indo sem parar um ponto:
Sou um foi e um será e um é cansado.

Em do hoje e amanhã haverá, junto
Panos e mortalha, e hei quedado
Presentes sucessões de defunto.

LUIS DE GÓNGORA

Córdoba, à pátria de Séneca e Lucano, vê nascer em 1561 a Luis de Góngora, filho dum prestigioso jurista de família nobre ao que não gozasse duma posição económica desafogada.

Na técnica do soneto supera aos seus contemporâneos. Desde os mais remotos, de 1582, se observa, junto à influência petrarquista (imita aos italianos Tasso, Ariosto e Sannazaro), sua fixação ao original no léxico, as imagens utilizadas e colorido, sobre todo quando expressa o sentimento amoroso, bem, ou seja, a celebrar seu gozo como a cantar o fracasso, seu medo, suas dúvidas ou na sua decepção como amante.

II
DE SAN LORENZO EL REAL DEL ESCORIAL (1589)

Sacros, altos, dourados capitães,
Que as nuvens borrais seus arrebóis,
Febo os temeu por mais luzentes sois,
E deste céu por gigantes mais cruéis.

Depois teus raios, Júpiter; não zeles
E teus, Sol; dum templo são faróis,
Que ao maior mártir dos espanhóis
Ergueu lhes o maior Rei um dos fiéis,

Religiosa grandeza do Monarca
Em cuja destra real ao Novo Mundo
Abrevia, e ao Oriente se lhe humilha.

Perdoe-lhe o tempo, lisonjeei à Parca,
A beldade de esta Oitava Maravilha,
Os anos de este Salomão fez Segundo.

III
A LA GRANDEZA Y DILATACIÓN DE MADRID (1610)

Nilo não sofras margens, nem muros
Madrid, ô peregrino, tu que passas,
Que dás menor inundação das casas
Nem há um os campos Tejo estão seguros.

Émula ao virem, séculos futuros,
De Menfis não, que ao término le tasas;
Do tempo sim, que profundas destas crenças,
Não são em vão pedernales duros.

Ô Dossel destes reis, de filhos estirpe
Há sido e sendo zodíaco do luzente
Da beldade, do teatro de Fortuna.

Á inveja daqui veneno dente
Alimenta só, privanças importunas.
Caminhe em tua paz, referir tua gente.

TRAD. ERIC PONTY

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