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domingo, março 18, 2018

O SONHO DA MORTE - FRANCISCO DE QUEVEDO - TRAD. ERIC PONTY


Farto é que me haja ficado algum discurso depois que veio a V. M., e creio que me deixou este por ser da morte. Não sei se dedico porque me o ampare; levando-se eu, porque o maior desígnio desinteressado é o meu, à emenda do que pode estar escrito com algum desalinho ou imaginado com pouca felicidade. Não me atrevo eu encarecer da invenção por não me acreditar de inventor.

Procurado lhe polir o estilo e sazonar à pluma com a curiosidade. Nem entre a riso me hei olvidado da Doutrina. Se me hão aproveitado o estilo e a diligência hei remitido a censura que V. M. me fizera de se chega a merecer que lhe observe, e poderei eu dizer então que sou infeliz por sonhos. Guarde-me Deus a V. M., que o mesmo fizera eu. Na prisão e na Torre, 6 de abril 1622.

Há Quem O Predizer

Hei querido que a morte acabe meus discursos como as demais coisas; quererá Deus que tenha está boa sorte. Este é o quinto tratado «Sonho do Juízo», al «Alguacil indemonizado», ao «Inferno» e ao «Mundo por de dentro»; não me fica já que sonhar, e sim na visita da morte não desperto, não há que aguardar-me. Se te parecer que já é mui o sonho, perdoa algo a modorra que padeço, e si não, guarda-me o sonho, que eu serei sete dormir das postrimerías. Vale.

 Estão sempre cautelosos e prevenidos as ruinas pensamentos, a desesperação covarde e a tristeza, esperando a colher a só há um desgraçado para mostrasse alentados com ele, própria condição de covardes em que juntamente fazem ostentação de sua malicia e de sua vileza. Por bem que o tenho considerado em outros, me sucedo em minha prisão, pois havendo, o por cariciar meu sentimento o por fazer lisonja a minha melancolia, lido aqueles versos que Lucrécio escreveu com tão animosas palavras, me venci da imaginação, e debaixo do peso de tão ponderadas palavras e rações me deixei cair tão prostrado com a dor do desengano que li, que nem sei si me desmaie advertido o escandalizado. Para que a confissão de minha fraqueza se possa desculpar, escrevo, pela introdução ao meu discurso, a voz do poeta divino, que sonha assim rigorosa com ameaças tão elegantes:

Denique si vocem rerum natura repente
mittat et hoc alicui nostrum sic increpet ipsa:
quid tibi tanto operest, mortalis, quod nimis aegris
luctibus indulges? quid mortem congemis ac fles?
Nam si grata fuit tibi vita anteacta priorque
Et non omnia pertusum congesta quasi in vas
commoda perfluxere atque ingrata interiere:
cur non ut plenus vitae conviva recedis?
Aequo animoque capis securam, stulte, quietem?

Lembrei logo pela memória de dar aviso à Job dando-nos vozes e dizendo: «Homo natus de muliere», etc.:

Ao fim homem nascido
Da mulher fraca, de misérias longínquas,
A breve vida quando flor traída,
De todo bem do descanso alheio,
Que é como sombra vã
Houvesse tarde e nasça à manhã.

Com este conhecimento próprio acompanhava logo o dá que vivemos, dizendo: «Militia est vita hominis super terram», etc.:

A Guerra é a vida do homem
Então vive neste solo,
E suas horas e seus dias
Como às dum jornaleiro.

Eu, que, arrebatado na estima, me vi aos pés dos desenganos rendido, com lastimoso sentimento e com zelo enojado, lhe tomei a Job daquelas palavras da boca com que empeza sua dor ao descobrir-se: «Pereat dies in qua natus sum», etc.:

Perecendo o primeiro dia,
Em que eu nasci na terra,
E à noite em que o varão
Foi-me concebido pereça.

Regressarei daquele dia triste
Em miseráveis trevas,
Não lhe alumbre mais à luz
Nem tenha Deus com ele conta.
Tenebroso torvelinho
Daquela noite ao possuir,
Não este dentre os dias do ano
Nem entre meses há tenham.

Indignos sejam os louvores,
Solitária sempre seja,
Maldiga os que ao dia
Maldizem com voz soberba,
Os que a içarem
Ao Leviatã se brotem,
E com negrumes se escureçam nas estrelas.

Esperavam à luz formosa
E nunca clareza luz vejam,
Nem o nascimento rosado.
Da aurora retornem em perolas,
Porque não se fechou o ventre
Que minha luxuria às portas,
E porque minha sepultura
Não foi meu berço primeiro.

Entre destas demandas e respostas, fatigado e arguido (suspeito que foi cortesia do sonho piedoso mais que natural) me encontrei adormido. Logo que, desembaraçada, à alma se vê ociosa sem à trava dos sentidos exteriores, me embestaram desta maneira na comédia seguinte, e assim se recitaram minhas potências nas escuras sendo eu e as minhas fantasias auditório e teatro.

FRANCISCO DE QUEVEDO
TRAD. ERIC PONTY

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