Para amar genuinamente, é preciso esquecer muito. Oh, essa indulgência que não se recompensa em detalhes, essa mansidão calorosa e total, orgulhosa e discreta, a ponto de ignorar os deméritos do ser amado, impedindo-o de perceber a sua culpa. As remissões covardes e mesquinhas de que se orgulha aquele que perdoa, que lhe criam uma superioridade sobre o seu amigo, sobre o seu amante; quase uma espécie de chantagem! Graças amargas e pesadas! Estar a todas as horas, todos os dias, com as suas alegrias e as suas dores, à mercê de um olhar, de uma palavra ambígua ou venenosa que, arrancando-o da exaltação em que vive, o afastará e lhe lembrará: «Eis que pecou, mas EU, eu perdoei-lhe!»
II
Escrever obras tristes, dolorosas, sorridentes com um sorriso doentio e vingativo, e pensar que tão pouco bastaria para apagar o riso fácil dos céticos e dos zombadores, conferindo-lhes uma eloquência talvez eterna: um minuto dessa vil coragem física. Mas isso seria adquirir a glória a um preço demasiado baixo.
III
Schopenhauer define a Piedade como um sentimento primordial, puro e espontâneo, sem outro motivo ou alimento além de si mesmo. Ele faz disso, creio eu, o fundamento da sua Moral. Abstraindo esses dois motivos bastante grosseiros e rudimentares: o do cristão e «faça aos outros o que gostaria que fizessem a si» — a caridade, praticada em segredo, sem qualquer ostentação filantrópica, sem qualquer esperança de recompensa, não derivaria ainda de algum egoísmo sublimado, de um amor-próprio mais infernal e condenável? Seria como um espelho bajulador que se apresentaria a si mesmo; um reflexo enobrecido, muito agradável ao orgulho íntimo do seu coração. A misericórdia, por mais obscena que seja a sua fonte, é louvável, pois os homens geralmente preferem complacer-se e glorificar-se no mal.
IV
Assistir diariamente a funerais: a mais infalível das ginásticas misantrópicas. Mas, para penetrar no fundo da ignomínia mundana, mergulhar na lama, seria preciso ser, alternadamente, advogado, médico e confessor ou, mais simplesmente, tornar-se usurário e limitar o seu tráfico a esse tipo de penhores: as memórias de família!
V
As litografias de Redon parecem, de certa forma, uma arte passiva; a colaboração excessiva imposta ao espectador explica a raridade das mentes que elas emocionam. Burlescos, esses desenhos, para as almas vulgares; elas riem deles, razoavelmente, aliás. Outros, diante destas gravuras arrepiante, embriagam-se com os seus sonhos, com alguns dos seus sonhos onde, na contemplação, os devaneios se projetam. É por isso que um álbum deste prestigiado aerolitógrafo é assinado. Uns se prendem ao sentido perceptível e palpável da obra e zombam; outros deixam sua imaginação fluir e se deixam levar por uma deriva suave e taciturna.
VI
ÉTICA - ESTÉTICA - estas palavras parecem mais do que parônimas. Não é muito plausível que a vilania, a baixeza de alma do «burguês» seja gerada pela absoluta falta de sentimento de harmonia?
De todo o instinto de euritmia? Ou, melhor dizendo, a conexão se afirmar cada vez mais?
evidente da falta de inteligência artística e do estrabismo moral: o feio, físico ou metafísico, deve causar ao artista uma repulsa equivalente.
Os compromissos ambíguos, os acordos dissimulados, os enganos fraudulentos, inofensivos e mascarados pelo verniz ostensivo do «como deve ser», não têm nada que assuste a consciência em espiral do burguês. As infâmias mais repugnantes passam por uma espécie de incubação no seu cérebro; ali familiariza-se, legitima-as, com o tempo, e entrega-se a elas com prazer; elas mantêm-no aquecido!
A maioria, aliás, ignorante da hediondez dos seus cálculos detestáveis carregam alegremente essa sórdida bagagem moral.
VII
Os incrédulos, esses lógicos de Panurgo, continuarão sempre a saudar com os seus risos estúpidos as curas operadas pela virtude de relíquias ou elogios quaisquer? «Vai», disse Jesus a Madalena, «vai, a fé salvou-te!». Essa promessa é verdadeira em suas duas interpretações, anagógica e literal: se um doente dúvida ou desconfia do seu médico, todos os remédios, por mais comprovados que sejam, permanecerão vãos e ineficazes. Ora, por que razão, sendo a confiança, pelo contrário, levada ao seu paroxismo; - o paciente, com uma fé total e profunda, juntando a mais perfeita e ardente fervor, - a convicção implícita, portanto, e salutar da preexcelência das relíquias; em outras palavras, se ele tem o desejo e a vontade contínuos e obstinados de curar-se. por que não poderia ele ser atendido? A fé o salvaria: um milagre, incontestavelmente; e o taumaturgo não seria outro senão ele mesmo.
VIII
As fortunas exorbitantes e quase fabulosas acumuladas por certos ignorantes, absolutamente analfabetos (Mackey etc.). A inteligência lúcida, a energia invencível e rígida desses homens é indubitável; mas a sua total ignorância não seria, para eles, comparável às manilhas que se colocam nos cavalos? Ela os impede de se desviar do caminho direto que o seu objetivo ilumina, os livra de hesitações, escrúpulos, especulações vazias, os proíbe de dispersar a sua prodigiosa força de vontade. Eles possuem apenas uma ideia, simples, clara, precisa, uma ambição, mas veemente, mas tenaz, nada os distrai, e isso é irresistível.
IX
As pessoas sensatas argumentam: a multidão é má juíza, concordo, e você a rejeita; no entanto, concorde que ela acaba por ter a última palavra no futuro! Não, esse raciocínio é falso e capcioso: a obra atual, contemporânea, submetida à multidão, está a ignora, a despreza, a aclama ou a vaiar: isso não tem a menor importância. Mas uma elite, sozinha, preocupa-se com as obras do passado, perpetua a sua glória — sempre depurada — ou rejeita-as para o esquecimento definitivo: os artistas vivos formam, consequentemente, o areópago que, sem temer aqui a inevitável acusação de parcialidade ou inveja venal, ratifica ou anula as decisões das gerações anteriores. O veredicto do tempo é, portanto, muitas vezes justo, porque é apregoado não pela maioria, mas pela minoria.
X
Esta experiência individual apaixonante e decisiva: descobrir um cérebro puro, uma inteligência nova, na plenitude das suas faculdades de entusiasmo, um ser sensível, compreensivo, mas de imaginação estéril; transplantá-lo, de repente, das terras clássicas de onde ele sairia, no meio da estufa superaquecida e ardente onde se erguem as vertiginosas floreiras das Flores do Mal; fertilizar o húmus, embriagado de seiva, desse intelecto com os fermentos exasperados da visão artística moderna; ler e comentar ao adolescente eleito as páginas da extraordinária antologia: Baudelaire, Poe, Huysmans, Dostoiévski, Villiers, Barbey, Verlaine, Mallarmé e esse monstruoso Maldoror; dar-lhe para folhear um álbum ideal: os primitivos, Goya, Vinci, Rops, Redon, Moreau; saturá-lo com alguma música tenebrosa, harmonias triunfantes e fúnebres. Maleficamente, sitiá-lo com circunvoluções savantes e complicadas, círculos cada vez mais concêntricos, desse maravilhoso feitiço; submetê-lo, finalmente, por uma cultura paciente e intensa, a uma espécie de desvio completo da coluna cerebral, um irreparável desequilíbrio; transformá-lo num ser saturniano, lunar, privado desse contrapeso todo-poderoso: a força criadora. E, acima de tudo, não se surpreender por amar o seu aluno, pois que desfecho se oferece a tal aventura?
XI
Um sonho: Uma sala de cerimônias com uma arquitetura heterogênea, delimitada, de um lado, por inúmeras colunas policromáticas, nas quais se enrolam infinitas procissões hieráticas, teorias de bois Apis e sacerdotes azuis e vermelhos, e, do outro lado, por janelas leves com persianas mouriscas. No meio do pavimento de cerâmica púrpura, deslumbrante e lacado, sob um dossel cinza-pérola, adornado com tufos de penas de avestruz pretas, sentado num trono banal, - a cadeira dourada constitucional! - este bufão hediondo, pontifica, vestido com o seu traje verde e amarelo, a Toisa de ouro no pescoço, a cabeça coroada com a Coroa de Ferro. Dois negros brilhantes, sombrias tochas, contemplam-no, com os olhos arregalados de admiração atordoada e pavor. Diante deste monarca singular, todo ocupado em alimentar uma horripilante ara, verde, branco e vermelho, desfila uma numerosa comitiva, fantasmagórica, que o pássaro saúda com gritos agudos. Em frente ao estrado, essas multidões heroicas e teatrais param, ficam de frente e se prostram, mecanicamente, como figurantes de ópera, com uma expressão orgulhosamente servil. O hierarca não se digna a olhar para elas e irrita o seu augusto papagaio, cuja tagarelice se exaspera. De repente, uma agitação faz oscilar as multidões, um movimento de recuo, depois elas imobilizam-se de terror: fanfarras lancinantes ressoam, ecoando estridentemente na colunata.
Os negros caem de medo; a cacatua, empoleirado numa pata, numa atitude expectante, observa o seu dono e segue os seus gestos com visível ansiedade. Este, de repente, para significar, ao que me pareceu, a sua aprovação ao voto silencioso do povo, batendo com o seu cetro na crista despenteada do animal, clamou: - Que o Justo seja crucificado, mais uma vez!
ARNOLD GOFFIN- TRAD.ERIC PONTY
ERIC PONTY POETA-TRADUTOR-LIBRETTISTA
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