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quinta-feira, julho 31, 2025

A garota desconhecida - Hugo von Hofmannsthal - - Trad. Eric Ponty

Quando a cortina se abriu pela primeira vez, dois estavam sentados juntos em uma pequena mesa bem iluminada e jantavam, um jovem rico e sua namorada. Garçons corriam e ciganos com roupas vermelhas tocavam música alta. Onde os dois estavam sentados, tudo era brilho, riqueza, boa vida e glória, mas ambos pareciam indiferentes e quase tristes, especialmente o jovem, que parecia infeliz, insatisfeito, como costumam ser os ricos. Os garçons e os músicos, que se esforçavam para servi-lo com comida e música, tinham todos, aos seus olhos, as mesmas máscaras sem vida e feias, o que o irritava, e ele olhava de lado, da sua mesa, para a escuridão da rua; como se estivesse olhando para um aquário, para outra vida, ele vê as figuras tristes e malvadas que se empurram para lá e para cá e olham fixamente para o luxo em que ele está sentado. Ele já quer desviar o olhar frio e indiferente, quando parece que alguns na rua fazem algo para que ele olhe diretamente para eles; como se tivessem algo para lhe mostrar, como se também lá fora estivessem tentando, de alguma forma, servi-lo ou distraí-lo. É um grupo inteiro que se mantém junto no pavimento da rua: uma velha, um corcunda, um maneta, um que tem apenas um olho e um jovem alto e atrevido com um boné. Todos olham ansiosamente para ele, agora saltam para o lado, como se tivessem colocado algo no chão para ele, um pacote, não, um corpo, um ser humano, uma jovem adolescente. Ela parece magra e pobre, seus cabelos caem sobre os ombros, ela levanta, ajoelhada, as mãos voltadas para a bela mesa iluminada – é um gesto aprendido, um gesto de mendicidade, ou realmente um pedido mudo e assustado? O jovem se levanta, ele sente que algo está começando, algo que ele nunca experimentou antes – ele pode se levantar calmamente, pois sua amada não olha para ele, ela acenou para o violinista escarlate e deixa que ele toque melodias doces e maliciosas em seus ouvidos, e os garçons os servem com dedicação. Então, o grupo de figuras feias se aglomera novamente e encobre a garota, depois se dispersa, mas a garota também se foi, o lugar na calçada está vazio. O jovem sentou-se, é servido, o jantar continua, às vezes ele lança um olhar procurando, quase atormentado, para a escuridão, e de repente a garota estranha está lá novamente. Desta vez, ela está de pé, caminha em direção a ele, lentamente, arrastando os pés, carregando uma cesta com violetas, como se fosse empurrada por trás. O jovem a vê e se levanta rapidamente, pensando que ela quer se aproximar dele, ele vai ao encontro dela, mas ela é puxada para trás, como se estivesse amarrada por cordas, e ele fica parado, olhando para a escuridão. Sua amante se levantou, parece que ele quer continuar, os caprichos dos ricos são imprevisíveis, rapidamente lhe entregam o casaco, o chapéu, ele não presta atenção em nada nem em ninguém, então algo se arrasta na escuridão, se aproxima dele, é a velha repugnante, atrás dela o homem com os olhos vendados e o outro aleijado. Agora o jovem rico sabe o que isso significa, ele está acostumado, há sempre um caminho, um casamenteiro, uma conexão, ele dá algumas moedas de ouro, a velha pega e sai na frente, os dois aleijados rodeiam a bela senhora, o que lhe resta, ela tem que segui-los. 

II 

Agora eles estão em um antro mal-afimado, onde há, para dar uma aparência de bar, uma mesa com algumas garrafas, e lá estão sentados o jovem e sua namorada, e os bandidos cercam os dois de forma bastante desagradável, mas ele não se importa, seu olhar está fixo em uma cortina suja e remendada, de onde deve sair a garota estranha, por quem ele veio, e espalha mais um pouco de ouro ao redor, enquanto os aleijados fazem danças repugnantes, como se quisessem atrasá-lo, então finalmente a garota aparece e dança para ele. Ele fica satisfeito e deleita os olhos com os membros comoventes e magros dela, e desfruta exuberantemente da magia do seu mistério entre essas pessoas repugnantes nessa espelunca e do estranho e ausente em seus olhos. Ele poderia ficar vendo-a dançar assim para sempre, mas ela fica fraca e pálida, um desmaio a toma, então a mulher a agarra com força e lhe dá rapidamente para beber de uma garrafa de aguardente, e ela pode continuar, jogando os membros com mais desejo do que antes, mas sempre com a mais incompreensível inocência; mas quando a dança está no auge, a velha a puxa para trás da cortina e dá-lhe fim. Isso é rápido demais para o jovem, que quer seguir a garota e falar com ela, ver seus olhos de perto, ele mesmo não sabe por quê. Então as pessoas puxam a cortina para o lado, mas a moça desapareceu, não há nada além de uma porta na parede, para a qual levam alguns degraus que podem conduzir a uma caverna ainda pior, um esconderijo dessa ralé, para onde levaram a moça. Ele quer ir atrás, e não se importa com o que possa haver lá; os bandidos trocam olhares pelas costas dele, que dizem inequivocamente: “Agora nós o temos”, e os brincos e anéis da sua bela namorada também são alvo desses olhares. Ela ficou paralisada de medo e repulsa durante todo esse tempo, mas agora, ao ver que ele quer entrar, levanta-se e não quer permitir, agarrando-se a ele com um medo lamentável nos olhos, e ele desiste, assim como os bandidos, com olhares venenosos, pelo menos por hoje, pois sentiram que ainda há algo a fazer com esse peixe e essa isca. De repente, todos se retiram silenciosamente, apenas a velha ainda está lá, falsa e repugnantemente humilde, mas a amiga já está na porta; da rua entra uma brisa, ele se abaixa mais uma vez e vê a garrafa com a bebida forte com que molharam a criatura estranha, e também há um pedaço de corda de videira fina, mas resistente, no chão. De onde veio isso? Ele olha para ela como se fosse algo especial e a guarda no bolso, mecanicamente, e então sai do bar e joga uma moeda para a velha, que fica ali hipocritamente, com a garrafa de aguardente nas mãos. 

III 

Agora eles estão em casa, na casa do homem rico, ou talvez seja o apartamento de sua namorada, ela está confortável, seminu, vestindo um lindo xale, e então ele entra, vestindo um roupão de veludo escuro, mas por baixo ainda está com o colete branco. A namorada quer fazê-lo esquecer e esquecer ela própria o que lhe parece um pequeno acontecimento sem sentido e desagradável, que esta noite tenham passado uma hora nesta taberna deserta por causa de uma mendiga desconhecida, mas sente que ele ainda não esqueceu; entre os dois se tece a familiaridade habitual, mas ele está confuso, tenso, e ela sente isso e não consegue controlar. Ela é carinhosa com ele, mas também meio tímida diante de algo nele que ela não consegue decifrar, e ele fica sentado ali, com ela e ao mesmo tempo ausente; então, ele enfia a mão no bolso do colete, talvez para pegar um cigarro, mas tira o pequeno pedaço de corda que guardou ali na taberna. Ela sente o quanto o outro está preso em seus pensamentos e fica ainda mais carinhosa e carinhosa, pega sua mão e tira o pedaço de corda da mão dele e o coloca em algum lugar, e ele deixa, mas em seus pensamentos não há nada além da garota estranha; lá está ela, em carne e osso, diante dele, como se tivesse saído da parede, contorcendo-se ao passar por ele, com os braços amarrados nas costas com um pedaço de corda fina, mas resistente, igual ao que ele segurava. A amiga, porém, não vê nada, pois a aparição é fruto da imaginação fervorosa do homem, mas para ele ela é real e ele fica olhando para ela, mergulhado em sentimentos confusos de medo e êxtase, até que ela desaparece novamente, como se a outra parede da sala a tivesse engolido. Há um silêncio entre o homem, para quem nada mais importa no mundo além dessa figura, e a namorada, que o encara com medo, e nesse silêncio se ouve uma batida discreta na porta, e o criado entra, todo constrangido por ter que anunciar alguém a essa hora, mas lá está a velha, a casamenteira da taberna, que se esgueira entre o batente da porta e o criado, arrasta-se em direção ao homem rico e lhe mostra algo, lhe entrega algo, uma chave, ele sabe que é a chave do quarto da moça, não pensa em nada, abre rapidamente uma gaveta, tira um revólver, enfia-o na cintura, empurra a velha para a frente, passa pelo criado, antes que a amiga perceba o que está acontecendo. Ele está lá fora e tranca a porta por fora, a amiga quer segui-lo, o criado também, sacodem a maçaneta, se jogam contra a porta, tudo em vão, ele tem uma grande vantagem, eles têm que admitir que não podem segui-lo e que ninguém o impedirá de seguir o caminho que a velha o leva. 

IV 

Há um canto feio e sombrio de uma grande cidade, casas em ruínas, todas parecem abandonadas, uma está meio demolida e ainda dá para ver o interior dos cômodos, e o papel de parede rasgado está pendurado nas paredes. No meio, entre as casas, há uma viela íngreme com degraus, e lá em cima, bem longe, há uma rua bem iluminada, mas aqui embaixo está tudo escuro. Lá vem a velha por um beco qualquer, e o homem rico atrás dela, envolto em seu manto de veludo e com a cabeça descoberta, tal como saiu de casa. Os bandidos já estavam visíveis nas janelas do porão e atrás de pilhas de entulho, principalmente o jovem forte com o boné e o braço tatuado, que acenaram uns para os outros, assobiaram e desapareceram novamente. A velha bate à porta de uma casa, e uma luz se acende, e ela quer ficar na porta e deixar o jovem entrar, mas ele hesita e fica do lado de fora, com o revólver na mão, escondido sob o casaco de veludo. A velha desiste, deixa-o lá fora e entra, e ele espera, a porta se abre novamente e mandam a menina sair para que ela traga o estranho para dentro. A menina vê o estranho na pouca luz que entra pela porta, reconhece quem ele é e não quer, fica paralisada. Em vez de acenar para ele, ela o repele e dá a entender que ele deve desistir dela e ir embora. Então, punhos a agarram por trás e a puxam para dentro, e a porta se fecha. Então, ele perde o pouco de cautela que tinha e bate na porta, querendo entrar, e eles abrem a porta pela metade, ele entra e, antes que consiga levantar o revólver, a lâmpada cai e eles se jogam sobre ele no corredor. Não se vê ninguém, ele bate sem força, enquanto lá fora o corcunda faz de parede viva e vigia para ver se ninguém passa. Então eles levam o jovem senhor de volta para a porta, mas roubado, com uma mordaça na boca e as mãos e os pés amarrados, e o jogam em um canto, como se estivesse morto, e querem ir embora. Então, de algum lugar, de uma fenda na parede ou de um buraco no porão, a garota sai rastejando, corre até o homem imóvel, alguém ainda a viu e eles imediatamente a perseguiram, ela fugiu deles como uma doninha, entrou na casa e se escondeu, alguém assobiou um apito estridente de alerta, então havia guardas nas proximidades ou trabalhadores na rua, pois já estava começando a clarear. Em um instante, os bandidos desaparecem, tudo fica como se estivesse morto. Depois de um tempo, a menina sai de um buraco no porão, rasteja em direção ao homem amarrado, de quatro, furtiva como um animal, até sentir que ninguém está à espreita. Então ela se levanta ao lado do homem amarrado, olha para ele com medo e ternura, toca suavemente seu rosto, morde as cordas em seus pulsos e o traz de volta à vida com carícias e toques e levantando-o. Ele volta à vida com os membros ainda meio rígidos e a cabeça confusa, e lá estão eles, um em frente ao outro, no chão, e ela está lá como uma mulher, não mais como uma criança, e derrama uma ternura exuberante sobre ele, e lá estão os dois de pé, e ele quer se aproximar dela, mas ela fica pálida como a morte, cambaleia e cai aos pés dele. Ele se ajoelha ao lado dela e não consegue entender como tudo isso pode acontecer tão repentinamente, toca-a e sente que ela não está desmaiada, mas que é uma mulher morta, e fica ali sentado, como atordoado. Já está quase dia e lá em cima, na rua, passam pessoas, trabalhadores e também mulheres, e alguns olham para baixo para ver o que o senhor está fazendo com a mulher que está imóvel no chão. Alguns deles descem e vão ver o que é, se abaixam bruscamente sobre a mulher e voltam assustados e desconfiados, olhando com desconfiança para aquele que está sozinho com o cadáver fresco, e ficam de olho nele, mas voltam para a beira da rua, onde ele fica parado contra a parede com sua aventura e seu mistério e tudo o que viveu, e o frio interior o sacode um pouco contra a parede, e as outras pessoas olham para ele, e a garota morta está deitada muito tranquila e bonita no meio das pedras, sem saber de nada.

Hugo von Hofmannsthal -  - Trad. Eric Ponty

  

  ERIC PONTY POETA-TRADUTOR-LIBRETTISTA

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