Pesquisar este blog

domingo, fevereiro 02, 2025

ORPHEUS. EURYDICE. HERMES - RAINER MARIA RILKE TRAD. ERIC PONTY

 

Essa era a estranha mina das almas.
Como silencioso minério de prata, elas vagavam
por suas veias escuras. Entre as raízes
brotava o sangue que chega aos homens,
e parecia duro como pórfiro na escuridão.
Nada mais era vermelho.

As rochas estavam lá
e florestas irreais. Pontes que atravessavam vazios
e aquele enorme lago cinza, cego e imóvel
que pairava sobre seu leito distante
como um céu chuvoso sobre uma paisagem.
E entre os prados, suaves e cheios de paciência,
a faixa pálida de um único caminho,
como uma longa palidez sendo branqueada.

E subiram por esse único caminho.

À frente, o homem esguio com o manto azul,
que, mudo e impaciente, olhava para a frente.
Seu passo devorava o caminho em grandes bocados
sem parar para mastigar; suas mãos pendiam pesadas
e cerradas para fora das dobras que caíam
e não tinham mais consciência da lira leve
que havia se enroscado em sua mão esquerda
como gavinhas de rosas em um ramo de oliveira.

E seus sentidos estavam como que divididos:
enquanto sua visão corria à frente como um cão,
dava meia-volta, voltava e então ficava
longe e esperando na próxima curva do caminho,-
sua audição, como um odor, ficava para trás.
Às vezes lhe parecia que ela chegava
que ele parecia ter chegado até os passos dos outros dois
que o seguiriam durante toda a subida.
Em outras ocasiões, era apenas o eco de sua própria escalada
e o vento de seu manto que ele ouvia atrás de si.
Mas ele disse a si mesmo que eles estavam chegando,
disse isso em voz alta e ouviu as palavras se apagarem.
Eles estavam chegando, só que caminhavam
com uma leveza assustadora. Se ele pudesse
se virar uma vez (embora qualquer olhar para trás
seria a morte para todo o empreendimento,
tão próximo da conclusão), ele teria que vê-los,
aqueles dois pés leves, que seguiam silenciosamente:

O deus das viagens e das mensagens distantes,
olhos brilhando sob o capuz do viajante,
o cajado fino estendido diante de seu corpo,
e em seus tornozelos um bater de asas;
e confiada à sua mão esquerda: ela.

Aquele tão amado que de uma única lira
surgiram mais lamentos do que nunca
das mulheres que se lamentavam;
que do lamento surgiu um mundo, no qual
tudo tinha uma segunda vida: floresta e vale
estrada e vilarejo, campo, rebanho e riacho;
e que em torno desse mundo de lamentos, assim como
em torno da outra terra, um sol se voltou
e um céu silencioso cheio de estrelas,
um céu de lamento com estrelas devastadas:
Este é tão amado

Mas agora ela caminhava sob as mãos daquele deus,
seus passos, limitados por longos lençóis sinuosos,
suaves, incertos e sem impaciência.
Ela estava em si mesma, como uma mulher perto do surgimento,
e não pensava no homem que caminhava à frente,
e nem no caminho que levava à vida.
Ela estava em si mesma. E o fato de ter morrido
a preencheu como uma abundância.
Como uma fruta madura com doçura e noite
ela estava repleta de sua grande morte,
que era tão nova que ela não entendia nada.
Ela estava em uma nova virgindade
e intocável; seu sexo havia se fechado
como uma jovem flor ao cair da tarde,
e suas mãos haviam sido tão desmamadas
do matrimônio, que até mesmo o toque
toque infinitamente suave e orientador do deus da luz
a machucava como se fosse uma liberdade muito grande.

Ela não era mais a esposa loira
que ecoava com frequência nas canções do poeta,
não era mais o perfume e a ilha da vasta cama,
e não era mais propriedade de um homem.

Ela já estava solta como um longo cabelo

e entregue como a chuva que cai
e distribuída como um suprimento ilimitado.
Ela já era raiz.

E quando, sem aviso prévio
o deus a parou e com dor em sua voz
pronunciou as palavras: Ele se virou..,
ela não entendeu e respondeu suavemente: Quem?

Mas ali, à distância, escuro contra a
a saída brilhante, estava alguém cujas características
não podiam ser lidas. Ele parou e viu
como naquela faixa do caminho do prado
com um olhar triste, o deus das mensagens
se virou silenciosamente para seguir a forma
que já estava retornando por aquele mesmo caminho,
seus passos, limitados pelos longos lençóis,
suaves, incertos e sem impaciência.

 RAINER MARIA RILKE TRAD. ERIC PONTY

ERIC PONTY - POETA - TRADUTOR - LIBRETTISTA

Nenhum comentário: