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sexta-feira, maio 31, 2024

O POETA COMO TRADUTOR - Fernando Fábio Fiorese Furtado

 Fernando Fábio Fiorese Furtado

Ao prefaciador de qualquer obra cumpre sempre a inglória tarefa de fazer o mapa de um território que nenhum papel acolhe ou respeita, de ser a voz reiterativa e unívoca de um coro que articula múltiplas entonações, sentidos e silêncios, de operar um texto condenado à marginalia, pois que o mínimo grafa das páginas subseqüentes importa mais que as pistas que o prefácio pretenda desvelar. O trabalho tradutório do prefaciador está condenado a priori, pois raras vezes consegue surpreender o motor e a paixão que desdobram um livro em intermináveis leituras.

Prefaciar os poemas traduzidos por Eric Ponty e coligidos sob o título de Vozes escritas sobre a areia implica antes de tudo reconhecer as diferenças entre dois modos de tradução. De um lado, a tradução técnica, de que o texto-prefácio é apenas um Ersatz mínimo, na medida em que tenciona assinalar as idéias principais da obra e reiterá-las de modo o mais literal possível; de outro, a tradução poética, na qual o adjetivo — derivado do grego poiesis, — prevalece sobre o substantivo para contaminá-lo com seus múltiplos sentidos: “criação, ação, fabricação, confecção, arte da poesia, faculdade poética, adoção”. 

Trata-se sempre de uma usurpata translatio, mas no caso da tradução de poesia urge que o autor verticalize a experiência consignada pelo sintagma cristalizado traduttore traditore, a ponto de adotar a voz do outro para criar a partir dela. Apenas neste fazer desviante, cuja ignição está no diálogo com o outro, pode-se pretender a criação de um poema que, sendo paralelo, guarda consangüinidade com o original. Trânsito de línguas que tão-somente um poeta pode almejar, na medida em que aposta antes nos desvios sintáticos e semânticos do que nos caminhos já pavimentados pelo uso. 

De San Juan de la Cruz a William Heyen, de Paul Valéry a Georg Trakl, o tradutor Eric Ponty busca assentar a voz e a rubrica à linguagem de outros poetas, busca assestar o olho aos horizontes ocultos nas entrelinhas de línguas diversas. E não é assim que se elabora a poesia: na fronteira entre a língua falada e a língua escrita, entre o dizível e o indizível, entre a linguagem e o silêncio. Diante de um idioma que não o nosso, resta-nos por vezes apenas o silêncio — o silêncio onde a linguagem engendra. Eric Ponty sabe a experiência desta leitura grávida de silêncios, e não renuncia às digressões aventureiras por esta zona de fronteira para converter ao nosso idioma os poemas que permanecem estrangeiros, pois toda linguagem criadora não pode escapar ao exílio. 

Traduzir poesia é fazer poesia. Tradutor porque poeta, poeta porque tradutor, Eric Ponty sabe ambos os exercícios — exercício de acolhimento, exercício de estrangeiridade — na medida em que tem a poesia como telos e o diálogo como motor. Traduzir e poetar exigem o acolhimento das múltiplas vozes que insurgem do silêncio originário. Para além do fantasma da autoria, saber ouvir é fundamento de toda a poiesis. Eric Ponty demonstra a sua paixão pela voz do outro também no fazer tradutório.

Juiz de Fora, verão de 2000.

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