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sábado, outubro 21, 2023

FAUSTO - I PARTE - CENA NO PARADISO - GOETHE - TRAD. ERIC PONTY

DEDICATORIA
Mais uma vez, pairam perto de mim, formas e rostos
Vistos há muito tempo com o olhar perturbado da juventude.
E devo desta vez abraçar-vos, deixando os vestígios,
Fugitivo ainda, daqueles dias encantados?
Vós, mais perto, pressionais: então tomai vossos poderes e lugares,
Comandai-me, erguendo-vos do nevoeiro e da névoa;
O meu coração, desperto, comovido, canta,
Como de um feitiço que se desprende do teu canto.

Trazes a taça de dias que foram alegres;
Memórias queridas, sombras amadas alçadas;
Como um velho eco lendário começou,
Vem a amizade e o primeiro amor diante dos meus olhos.
A velha mágoa estala, as feridas voltam a doer,
O labirinto da vida diante dos meus olhos de visão,
Fechando entes queridos que, por fortuna enganados,
Passaram pelo seu caminho, de amor e luz derrotados.

Eles não podem ouvir o que agora eu trago, atrasado,
Que se limitaram às primeiras melodias que fiz:
Foi-se a multidão do amor tão animada,
Morto o tributo responsivo que pagaram.
O meu tema trágico ressoa, para estranhos fadados,
Para um estranho aplauso que me faz ter medo.
O resto, que tinha a minha música doce e querida,
Andam pelo mundo dispersos, ou pereceram.

Agora vem sobre mim um desejo há muito esquecido
Do doce e solene encontro que esses espíritos guardam.
Sinto regressar as palavras trémulas da canção,
Como ares que suavemente nas cordas da harpa se arrastam.
O coração de tronco amolece, todo o seu orgulho desaprende,
Um estremecimento passa por mim, e eu choro.
Tudo o que tenho se afasta de mim ao longe,
E tudo o que perdi é real, a minha estrela-guia.
RAPHAEL
O Sol, num disfarce de cientista, competindo
Com as esferas irmãs na canção rival,
Com marcha de trovão, seu orbe completando,
Move seu curso predestinado ao longo;
O seu aspeto para as potências supernas
Dá força, embora ninguém o possa sondar;
Transcendendo o pensamento, as obras eternas
São belas como no dia primordial.

GABRIEL
Com presteza, o dever desconcertante, inabalável,
Que do esplendor da Terra rodopia em voo redondo;
O teu brilho de Éden alternando com solene e inspiradora noite;
As largas ondas do oceano em selvagem movimento,
Contra a base profunda das rochas são lançadas;
E com as esferas, tanto a rocha como o oceano
Eternamente são rodopiadas por si mesmas.
MICHAEL
E as tempestades rugem em conexão
De mar a terra, de terra a mar,
E forma furiosa, sem cessar,
Uma cadeia de maravilhoso efeito,
Que, no caminho do trovão, se vai espreitando,
Queima as velozes destruições;
Mas, Senhor, Teus servos estão venerando
A suave procissão do teu dia.

Os Três:
Teu aspeto às potências supernas
Dá força, ainda que ninguém te possa sondar;
E todas as tuas obras, sublimes, eternas,
São belas como no dia primordial.

MEPHISTOPHELES
Já que tu, ó Senhor, nos aprisionas mais uma vez,
E como é que isso se passa conosco, para perguntar,
já que gentilmente me recebestes de vós,
e me vedes agora também entre os vossos.
Desculpai-me, não posso fazer grandes discursos,
embora todo o círculo me olhe com desprezo;
Meu pathos logo despertaria vosso riso,
se não tivésseis o humor risonho há muito desgastado.
De sóis e mundos nada tenho a dizer,
Só vejo as dores da humanidade que se tortura.
O pequeno deus-mundo ainda conserva o mesmo estame,
E é tão maravilhoso agora como no dia primordial.
Melhor ele poderia ter feito, pobre homem,
se não lhe tivésseis dado uma réstia de luz vingativa;
A razão ele a nomeia, e assim o faz
Que a razão a nomeia, e assim a usa, 
do que os brutos mais brutos ainda a crescer.
Com deferência a Vossa Mercê, ele parece-me,
Como qualquer gafanhoto de pernas compridas,
Que sempre voa, e voa nasce, e renasce,
E na relva canta a tua antiga cantiga.
Se ele não estivesse sempre na relva, repousaria!
Em cada monte de esterco mete o nariz.

O SENHOR
Não tendes mais nada a dizer? A culpa
Ao vires aqui, como sempre, o teu único objetivo?
Não há nada na terra que te pareça correto?

MEPHISTOPHELES
Não, Senhor! Aqui, como sempre, acho as coisas em triste situação.
Os homens, nos seus dias maus, movem a minha compaixão;
Sendo de coisas tão tristes para atormentar não valem nada.

O SENHOR. Conheceis um Fausto?
MEPHISTOPHELES. O Doutor?
O SENHOR. Ele, meu criado.
MEPHISTOPHELES
De fato, Senhor, um estranho e fervoroso retentor:
De qualquer alimento terreno ele se abstém,
A sua febre leva-o a um plano elevado.
Em loucura, meio suspeito da sua parte,
ele anseia pelos mais belos orbes do céu,
Exige da terra a melhor alegria e arte,
E, longe e perto, o que agrada e absorve
Ainda não satisfaz o seu coração inquieto.
O SENHOR.
Embora agora ele me sirva de forma confusa,
a minha luz o levará em breve do seu desespero.
Não vê o cultivador, nos dias de folhagem
O que é que eu faço?
MEPHISTOPHELES
Quanto apostareis para não o perderdes?
Supondo que sempre não te oporás
Que eu o guie nos caminhos que escolher?
O SENHOR. Terás licença para fazer como preferires,
enquanto a terra continuar a ser a sua morada mortal;
Porque o homem deve afadigar-se, e lidar deve errar.
MEPHISTOPHELES
Os meus agradecimentos, Senhor. Porque, lealmente, 
são abjetos ter tanto a ver com o falecido em casa.
Para mim, uma face brilhante é como um banquete.
Não me sinto à vontade com cadáveres em minha casa:
Há em mim algo de gato e rato. 
TRAD. ERIC PONTY

ERIC PONTY-POETA-MESTRE-TRADUTOR-LIBRETISTA

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