Pesquisar este blog

segunda-feira, outubro 05, 2020

GUERNICA - TEXTO DRAMARTÚGICO DE ERIC PONTY - DIR: ROBERTO VIEIRA - TEATRO MUNICIPAL DE SJDR - 1998

 (Duas mulheres sentadas próximas de uma mesa. Entra Ernesto.).
Yeda: (costura)
Já vai para o campo? Não acha perigoso ir para o campo?
Ernesto:
Compreendam que preciso ir para o campo plantar. Não é por causa da revolta de alguns cidadãos que poderemos perder os nossos sustentos.
Anciã:
É seguro sair para o campo?
Ernesto:
Como as coisas estão não é seguro nem estarmos aqui nessa sala. O meu padrão tem de plantar comigo para termos alguma coisa ainda para comer.
Anciã:
É justo um homem que queria plantar o seu sustento num campo auxiliando o seu padrão, mas há uma revolta. Logo estaremos sem nada para comer.
Yeda: (costura)
Quando termina essa revolta poderemos viver em paz em nosso lar.
Ernesto:
A revolta não tocará o coração de nossos dirigentes.
Anciã:
A revolta assanha as sombras dos loucos.
Ernesto:
A revolta toma caminhos que são criados por ela mesma.
Anciã:
Permaneça fora dela é melhor.
Ernesto:
Minha única preocupação é o campo.
Yeda: (costura)
A honestidade está em jamais pegarmos em armas.
Anciã:
O trabalho dá a dignidade ao homem do campo.
Ernesto: (pegado o casaco)
Uma nação é construída por homens do campo.
Yeda: (costura)
Voltará à mesma hora?
Ernesto:
A mesma hora de sempre.
Anciã:
Cuidado, pois soube que se bombardeou a parte norte da cidade.(com revolta) Os malditos aviões da legião!
Ernesto:
Morreram muitos revoltosos.
Yeda: (costura)
Há várias famílias na desgraça. Ontem quando você estava no campo, uma família bateu a nossa porta. Não tinha nada para nós ajudá-los.
Ernesto:
As guerras apenas dissipam as famílias como se elas fossem sombras numa tarde.
Anciã:
Criam o desespero e a fome.

 Ernesto:
As revoluções infelizmente se fazem com o autocusto de vidas humanas.
Yeda: (costura)
O céu azul de dois meses atrás está manchado de sangue.
Anciã:
Tenho pena da família dos mortos quando as vejo na igreja se lamentando.
Ernesto: (caminhando para a anciã)
As revoltas humanas fedem a sangue e a bosta dos poderosos.
Anciã:
O verdadeiro homem é aquele que temente a Deus suporta as atribulações em silêncio.
Ernesto:
Quando a escuridão chegar o silêncio das revoltas tudo se silencia. (beijando a anciã e Yeda) Tenho de ir trabalhar, e retornarei para o jantar.
(sai. A Anciã e Yeda permanecem costurando.).
Yeda:
Volte em segurança meu amor.
Anciã:
Ontem um cantor passou em nossa porta tocando uma canção terna.
Yeda:
De que falava a canção desse homem?
Anciã:
De um homem que trabalha no campo dando de comer aos filhos. O sol de manhã nas vinhas, no céu azul há uma águia voar cerca-o de muito longe. A mulher desse homem lava a roupa na beira do riacho. (pausa) O resto da canção não sei. O cantor se distanciou de nossa porta.
Yeda:
Deve ser a história de algum trabalhador.
Anciã:
Tenho mau pressentimento dessa canção.
Yeda:
É apenas uma canção. Na verdade, existem poucas coisas mais terríveis que encontrar no mar num navio abandonado.
Anciã:
Um navio nunca está abandonado. Está sempre habitado pela memória de seus marinheiros. É como uvas nas parreiras numa época como essa. Quando se colhem as uvas nas parreiras o seu sabor é sem gosto como as revoltas.
Yeda:
A revolta se parece como uma uva velha numa parreira.
Anciã:
As famílias só estarão livres quando vermos esta revolta longe de nossas portas.
Yeda:
Lembra-se da expressão de dor naquela família na igreja?
Anciã:
Dor e fome.
Yeda:
Falam que a revolução altera a situação das coisas.
Anciã:
Por muito pouco tempo.
Yeda:
Alguém ouviu no rádio que logo tudo retornará ao normal.
Anciã:
Falam tudo nessas coisas.
Yeda:
Falam pra acalmar o povo.
Anciã:
Falam pra encher de velhas esperanças as almas dos homens e das mulheres de bem.

(Duas lavadeiras lavam a roupa numa bacia cheia de sangue.).
1 lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco,
pra que eu possa levá-lo exausto,
após um dia nas oliveiras.
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco,
numa cama onde cantarei canções
de onde sonhará outras tardes menos amargas.
2 lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco,
onde eu lhe guardarei o sorriso douro,
nas minhas amplas mãos de banhar o sangue.
1 lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco,
sou uma mãe aberta ao filho
fazendo outro carinho.
no fundo em mim.
2 lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco,
e quando procurem pelo quarto
achem apenas sua sombra.
1 lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco,
no meu útero há um lugar lindo
donde não ouvirá o canto da águia.
2 Lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco,
tenho tetas formosas, tetas babilônicas,
nos amamentará quando estiver estirado.

1 lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco,
larguem as agruras desse mundo. Ele não vale
o choro inútil duma sombra.
2 Lavadeira:
Consintam que chegue o homem cansado
a voz e o eco,
à tarde já segue longe. Em mim adormecerá.
1 lavadeira:
Na beira de um rio um homem. Só o homem não espera mais nada. Já andou estradas e fiou madrugada e teceu os raios da lua.
2 lavadeira:
Mas a manhã chegou. O homem estava feliz tinha bebido das vinhas à noite.
1 lavadeira:
O homem tinha olhos estranhos. Olhos de namorar a lua.
2 lavadeira:
Nessa manhã o homem desapareceu. Nunca mais o viram. Perguntaram aos outros andarilhos que alguém o tinham visto.
1 lavadeira:
Sabe-se apenas que o homem parecido está enterrado no cemitério vizinho. E ninguém consegue dormir por causa dos seus gritos.
2 lavadeira:
Foi necessário chamar a águia pra silenciá-lo.
1 lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco,
o mundo é como os raios da lua.
Um homem nunca sabe quando se apaixona.

(A Anciã continua sentada na cadeira fiando. Yeda caminha ansiosa.)

Anciã:
Ficou sabendo da morte daquelas duas senhoras que nos cumprimentavam na saída da igreja.
Yeda:
Soube que faleceram. Faleceram de quê?
Anciã:
A mais velha foi encontrada morta com aspecto roxo. E a mais nova morreu quando ia visitar o túmulo sendo atingida por uma bala deferida que escapuliu do fuzil de um dos milicianos.
Yeda:
É imoral toda essa confusão.
Anciã:
Quero reviver os velhos tempos das vinhas.
Yeda:
Como será quando tudo retornar ao normal.
Anciã:
Soube que as bombas danificaram a capela.

Yeda:
Um sacrilégio não respeitarem as coisas sagradas.
Anciã:
Deus há dar em troca através de onipresença que fez um ato como esse.
Yeda:
Agora teremos de rezar sobre os escombros.
Anciã:
É melhor ficar nessa sala segura.
Yeda:
Há qualquer instante pode cair uma bomba bem aqui.
Anciã:
O coração dos homens está habitado pelas sombras. É através das sombras que os homens povoam o mundo com suas bombas. Meu marido foi um anarquista quando vivo. No fundo sempre vi Deus olhando para ele em meio às sombras que o cercaram. Meu marido acreditava que o estado apenas roubava o real direito dos homens.
Yeda:
Com estado ou sem estado. Quero uma vida para poder viver.
Anciã:
O mundo não vale a roda que o gira. Meu marido sempre desconfiou da onipresença de Deus como se Ele fosse a onipresença do estado. O Senhor é meu Pastor e nada me faltará.
Yeda:
De Deus não tenho nada a reclamar.
Anciã:
Meu marido dizia que:” Deus é a invenção do estado”.
Yeda:
E como você conseguia conviver com esse homem sem Deus no coração?
Anciã:
Meu marido era um cidadão de bem. Não gostava apenas de ver Deus e estados tão intimamente ligados. São Tiago em seu evangelho dizia que o cordeiro de Deus não mandou que se fizessem templos em seu nome. Que Deus estava onipresente em cada pessoa e em cada coisa.
Yeda:
Ernesto é um anarquista também?
Anciã:
A política de Ernesto é a lavoura. Planta para nos dar o sustento do pão e do leite.
Yeda:
Um homem como tantos outros.
Anciã:
Parece que hoje vai gear. Tenho pena dos desabrigados. Não temos espaço para oferecer.
Yeda:
Esqueça-se disso! Já fizemos tudo que podíamos fazer.
Anciã:
Estava pensado um pouco comigo.

(2 lavadeira lava a roupa na bacia de sangue. Logo depois entra a 1 lavadeira)
2 Lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco, ele venceu a solidão
dando cem tiros de canhão.
No fundo não passa de um dócil menino
trancafia pombas em túmulos de ar.
Ele não passa de mocinho e bandido
luta pra obter uma glória falsa
qual os raios do sol na manhã.
1 lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco, ao tocar o tambor
pra alertar o outro homem que sobrevive
prisioneiro dentro dessa sombra.
2 Lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco, por aqueles que tombaram
agora estão vestidos em roupas de aurora.
1 lavadeira:
Consintam cheguar o homem cansado
a voz e seu eco, carrega consigo miserável
hino dizendo ilusões, tais navios distantes.
2 Lavadeira:
Consintam chegar o homem cansado
a voz e o eco, pela guerra que silencia
filhos que nasceram do sol.

(A Anciã continua sentada na cadeira fiando. Yeda costura ansiosa.).

Anciã:
É sufocante viver no meio de uma revolta. O barulho das vozes em meio às bombas. O cheiro de morte rodando no ar.
Yeda:
Todos os acontecimentos no meio de uma revolta são incertos.
Anciã:
A incerteza é uma sombra que ronda a pessoa.
Yeda:
Em abril havia o ar da esperança. Em outubro o tinir das espadas. E em dezembro o som soturno da morte.
Anciã:
O sangue escorre pelos azuis dos céus.
Yeda:
Em agosto a lua surgiu detrás de uma montanha. O cheiro da relva fresco. Hoje se sente a frescura do sangue derramado. Uma angústia toca em meu coração.
Anciã:
Não sente a frescura do sangue derramado?
Yeda:

Numa manhã uma pomba pousou na janela. Abriu asas brancas, olhou o horizonte e parou de cantar em mensagem em seu coração inútil.
Anciã:
Não sente a frescura do sangue derramado?
Yeda:
A única esperança que tenho é que Ernesto está no campo.
Anciã:
Se vivo fosse meu falecido marido estaria metido na revolta.
Yeda:
Seria um motivo a mais para nos preocuparmos.
Anciã:
O pêndulo conta às horas como a mãe vela o seu menino.
Yeda:
Os segundos nasceram para crucificar os homens.
Anciã:
Quem mata um homem deveria perder a sua sombra.
Yeda:
Que heresia! O homem não pode viver sem sua sombra.
Anciã:
Dizem que os soldados de Cristo perderam a sua sombra após se crucificarem.
Yeda:
Que heresia! O homem não pode viver sem sua sombra.
Anciã:
Pode sim Yeda. Dizem que há muito tempo viveu um carpinteiro de nome José Simeão, que freqüentava a mesma igreja que nos freqüentamos. Um dia Jose Simeão quis enfrentar o poder da águia. Ele deu um tiro no ar e matou a águia. A inocente águia caiu morta do chão, e os aldeões olharam horrorizados aquilo na frente deles. Nas noites, José Simeão sempre ouvia: Simeão, que você fez Simeão? Jose Simeão não conseguia dormir, e saia por estas vinhas correndo desesperado. Um velho aldeão da vila, um bruxo, disse que pra resolver o problema, Jose Simeão tinha que dar em troca a sua sombra.
Yeda:
É bobagem de aldeia.
Anciã:
Jose Simeão era o meu bisavô Yeda.
Yeda:
Como morreu o seu falecido marido?
Anciã:
Em abril. Ele era como um tambor alertando a consciência dos aldeões. Tocava neles, e se reunia com eles. Ele dizia, que o mundo não foi criado pra os homens de boas almas, esses não. Os homens de almas boas deveriam estar em casa protegidos.
Yeda:
Não era um homem de boa alma também?
Anciã:
Ele era um homem de boa alma. Ele morreu numa terça-feira, eu vi uma águia voando a nossa casa e senti um arrepio na alma. Ele morreu com um tiro no peito.
Yeda:
Ninguém encontrou o seu assassino?

Anciã:

Não nesse dia com ele morreram mais quatro homens. Você sabe que pela posição de anarquistas ninguém se preocupou em fazer justiça.
Yeda:
Há um silêncio que os mortos ouviriam no inferno como se fosse pronunciado por algum anjo.
Anciã:
Um lavrador via sua navalha para que ela cante os frutos da terra.
Yeda:
Meu avô dizia isso também. Uma boa navalha agradece os raios da lua que vela o seu descanso.

(Ouve-se o grunhido da águia. Campo Ernesto e o Miliciano.)

Miliciano:
Por que se escondeu de mim atrás da vinha?
Ernesto:
O que eu fiz para você me interrogar no meu trabalho?
Miliciano:
Está me acusando de estar o interrogando?
Ernesto:
Não estou acusando-o de nada.
Miliciano:
Questionar é interferir.
Ernesto:
Sou um camponês tentando colher o fruto na sua vinha.
Miliciano:
A revolta é feita por aquele como você estão tentando colher o fruto na sua vinha.
Ernesto:
Jamais me meti em revoltas.
Miliciano:
Como poderei saber se você está condizendo com a verdade?
Ernesto:
Pergunte para o Dono dessas vinhas.
Miliciano:
O seu patrão está sendo acusado formalmente por dar cobertura à revolta. Ontem por voltas das onze horas da noite foram encontrados revoltosos nessas vinhas. E você sabe todo camponês é revoltoso.
Ernesto:
Mas eu não tenho nada haver com a revolta.
Miliciano:
É isso que precisamos averiguar.
Ernesto:
Sempre trabalhei nessas vinhas. Sol após sol. Conheço as cicatrizes desse solo, de onde nasce essa nascente que alimenta essa terra. Sei das horas que o sol dialoga com as uvas. Ouço o lamento dessas uvas. Sabem as uvas como dessas vinhas possuem uma tristeza.
Miliciano:
Por favor, deixe de histórias tolas. Como poderei saber se você está condizendo com a verdade?
Ernesto:
É minha palavra.
Miliciano: (entrega-lhe um papel)
Você conhece esses nomes?
Ernesto: (lê o papel)
Sim eu conheço todos esses nomes. Trabalhei nas vinhas com as maiorias deles.

(Ouve-se o grunhido da águia. Duas carpideiras cegas.)

1 carpideira:
Viram-no andando pelo campo,
por uma vinha,
numa manhã de revolta e dor.
Que quer que eu chore?
2 carpideira:
Viram-no andando pelo campo,
por uma vinha,
Falaram-me que o sorriso é de prata,
os olhos tecidos douro,
sua língua chora amanheceres.
1 carpideira:
Viram-no andando pelo campo,
por uma vinha,
dizem que vai aparecer às duas horas,
beberá um bom copo de vinho
e adormecerá às três.
2 carpideira:
Viram-no andando pelo campo,
por uma vinha,
correndo como um menino
trazendo na cintura amarga língua.
1 carpideira:
Viram-no andando pelo campo,
por uma vinha. Eu não vi.
Nos ramos das vinhas que ocorreu?
2 carpideira:
Viram-no andando pelo campo,
por uma vinha,
no peito traz ferida da lua,
e nos olhos dores marinhas.
o camponês não dorme as três,
e se dormiu alguém o embebedou.
1 carpideira:
Viram-no andando pelo campo,
por uma vinha. Eu não vi.
Nos ramos das vinhas que ocorreu?

(Ouve-se o grunhido da águia. Delegacia. Ernesto e o Inquisidor.)
O Inquisidor:

Terminou de dizer que acha um absurdo que a palavra do individuo não seja aceita. Você quer subverter os fatos da justiça.
Ernesto:
Tenho a melhor intenção ao tentar informar ao estado.
O Inquisidor:
Nessa pasta temos todos os documentos sobre o seu pai. Anarquista.
Ernesto:
Meu pai tinha as convicções dele e eu tenho as minhas próprias convicções.
O Inquisidor:
Pare de tentar me enganar com besteiras. Seu pai foi um anarquista tocava com os outros camponeses revoltosos. A única preocupação era apenas de desestabilizarão das ordens do estado.
Ernesto:
Meu pai não trazia a política para dentro de casa.
O Inquisidor:
Não seja ingênuo o meu rapaz. A política e o caráter são elementos indissolúveis na composição de um individuo. Seu caso é muito grave.
Ernesto:
Nada sei que possa ajudá-lo.
O Inquisidor:
Reconhece todas as pessoas da lista que o miliciano lhe entregou como companheiros de vinha.
Ernesto:
Nos apenas somos companheiros de lavoura e não de ideias.
O Inquisidor:
Sinto o cheiro de insurreição nas suas vestes de algodão. Ninguém é inocente para não saber de nada. Vamos, abra o seu intimo para mim.
Ernesto:
Pergunte a qualquer sobre minha pessoa.
O Inquisidor:
São todos lavradores e estão metidos no meio da revolta.
Ernesto:
Nunca me envolvi com política.
O Inquisidor:
Se me ajudar poderei retirar seu nome da lista dos seus companheiros.
Ernesto:
Meu nome está na lista dos meus companheiros.
O Inquisidor:
Quando vocês perceberam que não tem como se esconder do estado? Não percebem que o estado está onipresente? O estado vasculha qualquer suspeita de insurreição. O estado é a construção dos bens morais para o bem dos cidadãos. O estado é construído como um coral de várias vozes cantando junta a mesma canção. Quando uma parte resolve cantar uma outra canção, cabe aos cidadãos de bem trazê-los de volta. Chamá-los pela sua razão de perceber o quanto estão equivocados em seus atos. O estado tem a capacidade de ouvir o menor canto da escoria no campo mais devastado onde haja um cidadão.
Ernesto:
Pergunte a qualquer sobre minha pessoa. Não fiz nada para estar diante desse interrogatório.
O Inquisidor:

Ser um anarquista e trabalhar para um. Vamos, a informação.
Ernesto:
Eu não sei de nada. Sei apenas que trabalho honestamente na minha vinha.

(Ouve-se o grunhido da águia. As duas lavadeiras lavam a roupa numa bacia de sangue.).

1 lavadeira:
Que se aproxime a voz do homem
E o eco trazido pelas esquinas,
Carregado pelos becos escuros.
Esse homem traz uma dor
amarga uva apodrecida.
Que se aproxime a voz do homem
E o eco no coração sofrido
da navalha enferrujada
sem vinhas a podar.
2 lavadeira:
Que se aproxime a voz do homem
E o eco com a navalha em sangue
repousada sobre a pedra.
Que ela cortou? O coração pulsa
sem vida.
1 lavadeira:
Que se aproxime a voz do homem
e o eco pelos mortos nas calçadas
pelos seus gestos anônimos,
pelas mulheres que por mais puras
não escondem um certo engano.
2 lavadeira:
Que se aproxime a voz do homem
E o eco com olhos que o ausentam,
nos cabelos que o vento na vinha
dialogava manhãs de junho.
Esse homem traz uma dor
amarga uva jazida.
1 lavadeira:
A águia já está sobrevoando.
2 lavadeira:
A águia já está sobrevoando. A águia traz no pico o canto dos desesperançados.
1 lavadeira:
O homem mais jovem cortou a vinha.
2 lavadeira:
O homem mais jovem se casou com a mulher mais nova e lhe deu a primeira uva da estação.
1 lavadeira:
A águia os sobrevoa saudando-os.
2 lavadeira:
A águia já buscou aquilo que lhe era seu.

 (Yeda está preocupada. A anciã tricota.)

Yeda:
Ernesto ainda não veio da vinha.
Anciã;
Quem sabe não teve problemas com as vinhas?
Yeda:
Tenho receio que algo lhe tenha acontecido.
Anciã:
Ernesto sabe se cuidar é bom rapaz.
Yeda:
Só me acalmarei no instante que eu o ver.
Anciã:
Você o verá já deve estar chegando.
Yeda:
Trazendo a sua calma pra essa casa.
Anciã:
Colocará a navalha sobre a mesa e nos recordará a canção de todos nossos dias.
Yeda:
E nos contará o seu dia duro na vinha.
Anciã:
Como nos velhos tempos que nós tínhamos paz.

(Ouve-se o grunhido da águia. As duas lavadeiras lavam a roupa numa bacia de sangue.)

2 lavadeira:
Que se aproxime a voz do homem
e o eco nos campos da vinha,
mãos fenecidas, e na boca um sorriso
amarelecido Sol.
1 lavadeira:
Que se aproxime a voz do homem
e o eco nos campos da vinha,
bebeu uva amarga.
Sem saber, a mãe e a esposa
esperam paradas na sala.
São duas velas acesas,
à imagem do Altíssimo Espírito Bento.
Inquietas ouvem sua voz distante;
a águia, grave, as escoa seus ecos
sabendo levar a sombra de Ernesto
em suas asas fragmentas de Sol.   

(Black-Out.)

TEXTO DRAMATÚRGICO DE ERIC PONTY


Nenhum comentário: