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terça-feira, abril 10, 2018

A poesia de um filho da Hélade - JOÂO DA PENHA




           Em seu primoroso livro "A literatura inglesa", Anthony Burguess observa que as palavras podem ser usadas de duas maneiras: uma artística, outra não-artística. 

Dito mais extensamente: as palavras mesmas podem ser vistas duplamente e distintamente. Pois, primeiramente, podemos buscar seu significado consultando o dicionário, onde encontraremos sua denotação. Podemos, ainda, verificar a associação que a palavra adquiriu por meio do uso constante - teremos, assim, suas conotações.

             O escritor literário, prossigamos na trilha do romancista e ensaísta inglês, persegue as conotações, vale dizer, as maneiras pelas quais ele, escritor, pode fazer com que suas palavras nos comovam ou nos excitem. E o poeta, artífice da "mais alta forma de literatura", está sobretudo preocupado com as conotações da palavra. E isso, essa preocupação, distingue o poeta do cientista ou dos autores da literatura jurídica, profissionais compromissados com o significado denotativo da palavra; neste caso, cada palavra deve significar uma coisa determinada e apenas ela. É o caso desse poema, de cuja graça infinita nos traz à efigie dum Van Gogh, que nos adverte de que escutar uma voz interior dizendo ‘você não pode pintar’, então pinte e essa voz será enfim silenciada no sempre:

Com dom Van Gogh eu sonhava menino,
Suntuosidade da Holanda do passado,
Com Saltério dos Santos, das estrelas.
Cria meu desejo, debaixo lúmen douro.

Entre perfumes sons sagrada música,
Hereges infinitos, céus carnais.
Agora, mais calmo, igual já febril,
Sabendo que vida é sucinto pacto.

Tendo que refrear minha rara postura,
Sim resignar-me, empenhei, o bastante.
Sendo assim! Nobre seduz meu predicado.

Porém distante mim, com fiz, o amável,
Hoje aborreço igual à mulher formosa,
Cuja rima assonante a amiga sensata.


            Desde tempos imemoriais, assim trabalham os poetas, os verdadeiramente poetas. São artistas por excelência da palavra, da palavra conotativa. No Ocidente assim é desde que a luz da Hélade passou a iluminar esta parte do mundo que à palavra transcendeu o ser.

           A literatura grega é da literatura clássica por excelência, sentenciou, com todas as razões, o poeta Manuel Bandeira. A literatura de Homero, educador da Grécia, nos assegura Platão. Homero, como Orfeu, Museu, Lino, é uma figura lendária. O que sabemos do grande aedo   chegou até nós via uma ou outra tradição popular, ou por meio de especulações de gramáticos com base em passagens da "Odisseia" (ou "Ulisseia") e da "Ilíada". Muita e muita tinta correu sobre as origens de Homero. Sete cidades reivindicam ser seu berço natal. Camões, o poeta-fundador da língua portuguesa, descreve em "Os Lusíadas" a disputa:

 "Esse que bebeo tanto da agoa Aonia/Sobre quem tem contenda peregrina,/Entre si, Rodes, Smirna, e Colofonia,/Atenas, Yos, Argo e Salamina".

         Por muito tempo, houve correntes que nos descreveram essas duas epopeias homéricas como uma coleção de rapsódias de autoria coletiva e totalmente anônima.  Wolf esposou tal teoria, acatada por muitos críticos mercê da grande erudição com que foi exposta. Mas houve quem dela discordasse, à frente um poeta do porte de Schiller, que considerava "bárbaros" os argumentos utilizados. Goethe, inicialmente, mostrou-se receptivo à hipótese wolfiana. Mais tarde, ficou convencido da unidade dos poemas, suficiente, a seu ver, para anular a tese de uma autoria múltipla.  O avanço da literatura comparada e o aprofundamento do método crítico - e sejam acrescentadas as estas descobertas arqueológicas - esvaziaram os esforços dos seguidores de Wolf em validarem a teoria de seu prógono. 

É a essa literatura grandiosa ora que lhe pertence.

        Sendo poeta. Quer dizer na prática mais elevada das formas literárias. É qual poeta grego. Herdeiro, portanto, de uma literatura que não teve mestres -  formou-os. Literatura que criou gêneros, forjou modelos. Poeta da erudição como nesse poema expressivo da alma de Hélade grega:

Fala: Confinar-me-ei outro chão, ir oceano.
De outra urbe terá de ser melhor paragem.
Sendo à cada ânimo meu é dito proferido;
Do meu coração — padecido — pregado.
Até porque minha alma finda o marasmo?

Olhe meus olhos, onde quis olhar certa vez,
Percebi ser negras ruinas da essência,
Passei tantos anos derruídos e gorados»

Não dirás aos chãos, não dirás outros oceanos.
Urbe ti acossará. Andarás nas vias pastoris.
Seguirás os arrabaldes até tua vetustez;
Entre muros iguais irás lamentar-se n´alma -
Sempre regressarás a urbe. Ser outra região —
Não ti espere absolvição sinal — É local.

       Como diáspora grega é Konstantinos Kaváfis, nascido no norte da África, na cidade de Alexandria. À Grécia, Kaváfis só foi umas poucas e breves ocasiões. Sua majestosa poesia só veio a público postumamente. Seus poucos mais de 150 poemas foram recolhidos por Aleko e Rika Singopoulos. E. M. Forster e T.S. Eliot fizeram enormes esforços em divulgar a poesia do grande grego quando este ainda vivia, mas o próprio recusou o favor, pois não considerava sua obra suficientemente amadurecida a publicação, além de desejar vê-la divulgada em seu idioma original antes de sair em tradução.

     Para gáudio dos admiradores da grande poesia, está poesia está entre nós. E publicando. Publicando poesia de alto nível.

      O poeta explorar a sabedoria de Atena, sendo que este explora:

Lira içou. Transcendência candura!
Igual canto Orfeu! A Lira pura orelha!
Tudo silencia. Tudo silente faz se ouvir
Surgindo princípio, do sinal, à mutação!

Bestas silentes sujeitaram clareza
Selva desatada em ninhos e jazigo;
Sons evidentes da astúcia coeva
O Medo amansava-se igual forma.

Sim ouvis. Ruídos, berros, brados sumidos,
Pequenos corações. Onde não há asilo,
Senão de onde acolher estrondo advindo.

Ser o refúgio volição obscuríssima
É um umbral brunas jaulas sombrias;
Tu lhes criaste à catedral nesse ouvido.

                 Um aspirante a poeta, Franz Xaver Kappus, trocando cartas com Rilke, submeteu seus poemas à apreciação do grande vate. Resposta de Rilke:
  
 "Perguntais se vossos versos são bons. Perguntais a mim. Haveis anteriormente perguntado a outros. (...). Ninguém vos poderá orientar e ajudar. Ninguém. Só há um meio. Entrai em vós mesmos. Pesquisai o fundamento que vos chama a escrever; verificai se ele tira as suas raízes do mais profundo de vosso coração, respondei a vós próprios se haveríeis de morrer, se vos fosse vedado escrever. E, sobretudo, isto interrogai-vos no maior silêncio da noite: devo escrever?" 
                  Kappus, ao que se sabe, não insistiu na poesia - tudo leva a crer que buscou rumos mais prosaicos na vida.

                  Ora, a poesia, em Rilke, tem algo de monástico, ascético, pois, ele nos advertiu, a cultivá-la é preciso “solidão, grande solidão interior. Entrar em si mesmo e, por horas a fio, não encontrar ninguém - eis o que se deve conseguir".

   Eric Ponty conseguiu praticar tão difícil exercício da alma artística. Por isso, se torna um poeta de alto coturno onde som, metáfora e música se fundem numa expressão profana artística, mas que tem algo de monástico, ascético.

                                             João da Penha
                                             Jornalista e escritor.

* Mantive, na citação, a grafia original das duas edições de 1572, ano da primeira publicação de "Os Lusíadas".

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