Em
seu primoroso livro "A literatura inglesa", Anthony Burguess
observa que as palavras podem ser usadas de duas maneiras: uma artística,
outra não-artística.
Dito mais extensamente: as palavras mesmas
podem ser vistas duplamente e distintamente. Pois, primeiramente, podemos
buscar seu significado consultando o dicionário, onde encontraremos sua
denotação. Podemos, ainda, verificar a associação que a palavra
adquiriu por meio do uso constante - teremos, assim, suas conotações.
O escritor literário, prossigamos na trilha do romancista e ensaísta inglês,
persegue as conotações, vale dizer, as maneiras pelas quais ele,
escritor, pode fazer com que suas palavras nos comovam ou nos excitem. E
o poeta, artífice da "mais alta forma de literatura", está
sobretudo preocupado com as conotações da palavra. E isso, essa
preocupação, distingue o poeta do cientista ou dos autores da literatura
jurídica, profissionais compromissados com o significado denotativo da palavra;
neste caso, cada palavra deve significar uma coisa determinada e apenas
ela. É o caso desse poema, de cuja graça infinita nos traz à efigie dum Van
Gogh, que nos adverte de que escutar uma voz interior dizendo ‘você não pode
pintar’, então pinte e essa voz será enfim silenciada no sempre:
Suntuosidade da Holanda do passado,
Com Saltério dos Santos, das estrelas.
Cria meu desejo, debaixo lúmen douro.
Entre perfumes sons sagrada música,
Hereges infinitos, céus carnais.
Agora, mais calmo, igual já febril,
Sabendo que vida é sucinto pacto.
Tendo que refrear minha rara postura,
Sim resignar-me, empenhei, o bastante.
Sendo assim! Nobre seduz meu predicado.
Porém distante mim, com fiz, o amável,
Hoje aborreço igual à mulher formosa,
Cuja rima assonante a amiga sensata.
Desde tempos imemoriais, assim trabalham os
poetas, os verdadeiramente poetas. São artistas por excelência da palavra, da
palavra conotativa. No Ocidente assim é desde que a luz da Hélade passou a
iluminar esta parte do mundo que à palavra transcendeu o ser.
A literatura grega é da literatura clássica por excelência,
sentenciou, com todas as razões, o poeta Manuel Bandeira. A literatura de
Homero, educador da Grécia, nos assegura Platão. Homero, como Orfeu, Museu,
Lino, é uma figura lendária. O que sabemos do grande aedo chegou até nós via uma ou outra tradição
popular, ou por meio de especulações de gramáticos com base em passagens da
"Odisseia" (ou "Ulisseia") e da "Ilíada". Muita e
muita tinta correu sobre as origens de Homero. Sete cidades reivindicam
ser seu berço natal. Camões, o poeta-fundador da língua portuguesa,
descreve em "Os Lusíadas" a disputa:
"Esse que bebeo tanto da agoa Aonia/Sobre
quem tem contenda peregrina,/Entre si, Rodes, Smirna, e Colofonia,/Atenas, Yos,
Argo e Salamina".
Por
muito tempo, houve correntes que nos descreveram essas duas epopeias
homéricas como uma coleção de rapsódias de autoria coletiva e totalmente
anônima. Wolf esposou tal teoria, acatada por muitos críticos mercê da
grande erudição com que foi exposta. Mas houve quem dela discordasse, à frente
um poeta do porte de Schiller, que considerava "bárbaros" os argumentos utilizados. Goethe,
inicialmente, mostrou-se receptivo à hipótese wolfiana. Mais tarde, ficou
convencido da unidade dos poemas, suficiente, a seu ver, para anular a
tese de uma autoria múltipla. O avanço da literatura comparada e o
aprofundamento do método crítico - e sejam acrescentadas as estas
descobertas arqueológicas - esvaziaram os esforços dos seguidores de Wolf
em validarem a teoria de seu prógono.
É a essa literatura grandiosa ora que lhe pertence.
Sendo
poeta. Quer dizer na prática mais elevada das formas literárias. É qual poeta
grego. Herdeiro, portanto, de uma literatura que não teve mestres -
formou-os. Literatura que criou gêneros, forjou modelos. Poeta da
erudição como nesse poema expressivo da alma de Hélade grega:
Fala: Confinar-me-ei outro chão, ir oceano.
De outra urbe terá de ser melhor paragem.
Sendo à cada ânimo meu é dito proferido;
Do meu coração — padecido — pregado.
Até porque minha alma finda o marasmo?
De outra urbe terá de ser melhor paragem.
Sendo à cada ânimo meu é dito proferido;
Do meu coração — padecido — pregado.
Até porque minha alma finda o marasmo?
Olhe meus olhos, onde quis olhar certa vez,
Percebi ser negras ruinas da essência,
Passei tantos anos derruídos e gorados»
Percebi ser negras ruinas da essência,
Passei tantos anos derruídos e gorados»
Não dirás aos chãos, não dirás outros oceanos.
Urbe ti acossará. Andarás nas vias pastoris.
Seguirás os arrabaldes até tua vetustez;
Entre muros iguais irás lamentar-se n´alma -
Sempre regressarás a urbe. Ser outra região —
Não ti espere absolvição sinal — É local.
Urbe ti acossará. Andarás nas vias pastoris.
Seguirás os arrabaldes até tua vetustez;
Entre muros iguais irás lamentar-se n´alma -
Sempre regressarás a urbe. Ser outra região —
Não ti espere absolvição sinal — É local.
Como diáspora grega é Konstantinos Kaváfis, nascido
no norte da África, na cidade de Alexandria. À Grécia, Kaváfis só foi umas
poucas e breves ocasiões. Sua majestosa poesia só veio a público postumamente.
Seus poucos mais de 150 poemas foram recolhidos por Aleko e Rika Singopoulos.
E. M. Forster e T.S. Eliot fizeram enormes esforços em divulgar a poesia do
grande grego quando este ainda vivia, mas o próprio recusou o favor, pois não
considerava sua obra suficientemente amadurecida a publicação, além de desejar
vê-la divulgada em seu idioma original antes de sair em tradução.
Para gáudio dos
admiradores da grande poesia, está poesia está entre nós. E publicando.
Publicando poesia de alto nível.
O poeta explorar a sabedoria de Atena, sendo que este explora:
Lira içou. Transcendência candura!
Igual canto Orfeu! A Lira pura orelha!
Tudo silencia. Tudo silente faz se ouvir
Surgindo princípio, do sinal, à mutação!
Igual canto Orfeu! A Lira pura orelha!
Tudo silencia. Tudo silente faz se ouvir
Surgindo princípio, do sinal, à mutação!
Bestas silentes sujeitaram clareza
Selva desatada em ninhos e jazigo;
Sons evidentes da astúcia coeva
O Medo amansava-se igual forma.
Selva desatada em ninhos e jazigo;
Sons evidentes da astúcia coeva
O Medo amansava-se igual forma.
Sim ouvis. Ruídos, berros, brados sumidos,
Pequenos corações. Onde não há asilo,
Senão de onde acolher estrondo advindo.
Pequenos corações. Onde não há asilo,
Senão de onde acolher estrondo advindo.
Ser o refúgio volição obscuríssima
É um umbral brunas jaulas sombrias;
Tu lhes criaste à catedral nesse ouvido.
É um umbral brunas jaulas sombrias;
Tu lhes criaste à catedral nesse ouvido.
Um aspirante a poeta, Franz Xaver
Kappus, trocando cartas com Rilke, submeteu seus poemas à apreciação do
grande vate. Resposta de Rilke:
"Perguntais se vossos versos
são bons. Perguntais a mim. Haveis anteriormente perguntado a outros. (...).
Ninguém vos poderá orientar e ajudar. Ninguém. Só há um meio. Entrai em
vós mesmos. Pesquisai o fundamento que vos chama a escrever; verificai
se ele tira as suas raízes do mais profundo de vosso coração, respondei a
vós próprios se haveríeis de morrer, se vos fosse vedado escrever. E,
sobretudo, isto: interrogai-vos no maior silêncio da noite:
devo escrever?"
Kappus, ao que se sabe, não
insistiu na poesia - tudo leva a crer que buscou rumos mais prosaicos na vida.
Ora, a poesia, em Rilke, tem algo de monástico,
ascético, pois, ele nos advertiu, a cultivá-la é preciso “solidão, grande
solidão interior. Entrar em si mesmo e, por horas a fio, não encontrar ninguém
- eis o que se deve conseguir".
Eric Ponty conseguiu praticar tão
difícil exercício da alma artística. Por isso, se torna um poeta de alto
coturno onde som, metáfora e música se fundem numa expressão profana artística,
mas que tem algo de monástico, ascético.
João da Penha
Jornalista e escritor.
* Mantive, na citação, a grafia original das duas
edições de 1572, ano da primeira publicação de "Os Lusíadas".
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