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terça-feira, dezembro 16, 2025

TRÊS VOZES SIMBOLISTAS PARAENSES UM MINEIRO - ERIC PONTY

 

A inseparabilidade do não-momento, sempre palpável e que se tornou particularmente evidente na última secção, tanto no conceito de possibilitação de Heidegger como na palavra fundamental de José Severiano de Rezende, a transformação, direciona o olhar para uma possível questão dialética.

O ponto de partida para a formulação do conceito de transformação foi a «conversão» de «experiências» com o meio artístico que se «descobriu»; ele só pouco a pouco desenvolveu o seu alcance. A consciência da seriedade fundamental do não para todas as relações da existência humana levou à dedução da mutação a partir das profundezas da existência:

Ignota landa astral da Bem-aventurança,
Há na terra vã ódio e desesperança.

Não vejo a lua luz, não ouço os teus cantares,
Mas há vinho e canções dentro dos lupanares.

demônio da Carne escrutou-me os relolhos
E envenenou-me o sangue a chispa dos seus olhos.

Landa astral, landa astral dos divinais Profetas
Rezam dentro de mim ladainhas abjectas.

O, minha alma! que horrenda esta história sem fim
Ai! de tais vozes dentro de mim.
Mas eu nunca hei de crer que as bocas dos Profetas
Rezam para eu chorar, estas rezas abjectas. 


Assim como o ser da existência está relacionado com o ser em geral, a existência se estende além do nada da opinião até o ser. Ao ser dominado pelas possibilidades destrutivas do sofrimento não transformado, José Severiano de Rezende chegou a uma conclusão fundamental. 

A transformação das experiências pessoais negativas para alcançar «um estado mais saudável no centro do próprio ser» «precisa» exatamente da mesma função do não, como deve fazer a transformação do que se recusa e se nega na arte. Tornar isso uma «ação do coração» era a expressão de José Severiano de Rezende para isso; da forma como José Severiano de Rezende lida com essa «ação», há nela uma forma específica de dialética. 

Vamos chamá-la de dialética existencial e usar essa palavra aqui. O termo se oferece e foi cunhado para uma penetração intelectual do que José Severiano de Rezende realmente realiza em sua própria existência, na compreensão e na ação, mas naturalmente não designa assim.

Ele deve servir-nos para esclarecer o alcance da rejeição fundamental de Heidegger a qualquer dialética. A diferença entre os dois caminhos do poeta e do pensador deve ser indicada neste ponto, ao qual dirigiu o incremento do conceito de transformação de José Severiano de Rezende.

 A compreensão de José Severiano de Rezende da função dialética do não tem, em estreita espiritual e, num sentido mais amplo, artístico, a sua fiúza nas grandes probabilidades da transformação. Já com isso surge um momento que vai além da possibilidade meramente funcional de Heidegger. É verdade que vimos que, também para o pensador, um ponto de partida para a possibilidade está na experiência da nulidade (preocupação, retorno; ser a razão de uma nulidade = ser lançado; ser culpado). Ela desemboca na virada decidida para o ser propriamente dito e para as tarefas determinadas a partir daí. Para José Severiano de Rezende, porém, estas últimas só se preenchem com conteúdo concretos no que diz respeito à dimensão da cura. 

Desde o início, José Severiano de Rezende pressupõe, portanto, uma certa finalidade que se desenvolve dialeticamente. Heidegger, porém, silencia completamente sobre os conteúdos existenciais críveis na probabilidade possibilitada. Isso é corretamente lógico do seu ponto de vista existencial-ontológico.

O uso do não é «necessário» dialeticamente para uma transição para a área existencial mais restrita, e contra a aparência de uma dialética no próprio pensamento de Heidegger, que se sugere repetidamente, está a rejeição expressa de Heidegger. O grau máximo de positividade que ele reivindica para o seu Não é a possibilidade de algo. É claro que ela é grande o suficiente para construir um mundo inteiro; no entanto, permanece na indeterminação completa e sem transição da possibilidade. 

Do caráter puramente estrutural da existencialidade decorre inevitavelmente que qualquer aspecto de valorização deveria ser evitado. Embora a sua linguagem (cotidianidade, homem, inautenticidade, autenticidade, decadência) tenha ocasionalmente dado origem a mal-entendidos nesse sentido, eles foram rejeitados por ele. E, no entanto, não só foi admitido, como também expressamente afirmado o pressuposto de um ideal de existência. (É claro que a palavra «ideal» aqui utilizada deve ser entendida sem qualquer conotação de exemplaridade.) Uma dialética barata do «homem-mesmo» que conduz ao eu real através da popular «transformação» não tem, evidentemente, lugar em Heidegger. Parece, porém, que Heidegger também possibilidades tensas para a existência que se concretiza dialeticamente. E, no entanto, ele próprio fornece abordagens formais e estruturais para isso. 

A rejeição de Heidegger deve ser respeitada enquanto o esforço para compreender Heidegger se compreender a si mesmo. No entanto, indo além dessa constatação, é preciso considerar se não seria possível alcançar possibilidades de aproximação entre a questão existencial e a ontológica, entre a verdade óntica e a ontológica. Isso não deve acontecer por meio de um esbatimento da distinção seriamente elaborada por Heidegger entre óntico e ontológico, entre existencial e existencial. No entanto, deveria ser possível encontrar uma articulação na qual, de certa forma, ambas as abordagens se encaixassem. Essa articulação seria a consciência, que sempre é culpada. Mas será que ela é utilizável por Heidegger no sentido aqui referido?

No âmbito mais restrito de uma filosofia da existência, isso poderia trazer alguns benefícios. Além disso, o não-ser da existência conduz ao nada no fundo do ser, criando uma ponte que leva à relação «presumida» entre o ser da existência e o ser em geral:

Rezam dentro de mim ladainhas abjetas.

 A tentativa de conduzir, por meio do não da negação, ao nada antes do ser não deveria constituir um dos casos-teste para a conjuntura hermenêutica fundamental da existência, «que, como análise da existência, fixou o fim do fio condutor de todas as questões filosóficas naquilo de onde elas brotam e para onde elas se reviram» É a abertura, impulsionada pelo excelente estado básico da angústia, que, na relação mais estreita com o nada do nada, possibilita a determinação para o ser-para-o-fim. O projeto existencial de uma verdadeira capacidade de ser para a morte surge do nada do fundamento lançado. Nesta expressão paradigmática da mais completa falta de liberdade, a existência entende-se como sempre culpada. Como é que isso pode tornar-se liberdade? Como pode a «liberdade para a morte» ser compreendida, se não a partir de um ser espontâneo da existência para a transformação, que se repele do nada da razão lançada?

Mas eu nunca hei de crer que as bocas dos Profetas

A existência liberta-se ao atravessar um negativo oposto para possibilitar as probabilidades positivas que só descobre ao assumir a situação em que se encontra. Se a «lógica da consequência» é rejeitada — e como poderia ela ajudar aqui? — e se também o pensamento circular (frequentemente sugerido por Heidegger noutras partes da sua obra) é ineficaz para resolver a dificuldade, resta apenas uma execução especificamente dialética. 

A dificuldade fundamental para isso e a razão para o limite agora alcançado de uma paralelização entre «tornar possível» e «transformar» reside, no entanto, no fato de que, para Heidegger, «o fenômeno primário da temporalidade original e propriamente dita é o futuro».

Do ponto de vista de Heidegger, isso se justifica na medida em que no «antecipar-se», no «anteceder», no «projeto» e, finalmente, na «preocupação = sentido do ser do ser = temporalidade»; existe um certo elemento «antecipado» que a abrangência comum do ser pode explanar de forma fácil como direção para o futuro:

demônio da Carne escrutou-me os relolhos
E envenenou-me o sangue a chispa dos seus olhos.

Neste ponto da reflexão, porém, surge a questão decisiva: este «antes» na preocupação = temporalidade refere-se realmente apenas ao futuro? Este elemento «antes» não reside, de modo geral e basal, no caráter de projeto de qualquer horizonte temporal? 

Não vejo a lua luz, não ouço os teus cantares,
Mas há vinho e canções dentro dos lupanares.

Pelo simples fato de a existência nunca existir de outra forma senão extática — isto é, sempre «preocupada» —, ou seja, «temporal», «temporalizante», ela deve ser distinta como «ante». 

Ignota landa astral da Bem-aventurança,
Há na terra vã ódio e desesperança.

É conciso dizer claramente: em cada êxtase como horizonte do tempo está presente esse elemento «pré». A «co-origem» do tempo, repetidamente enfatizada por Heidegger, exige que se compreenda essa conclusão para cada um dos três êxtases. É esse elemento fundamentalmente preexistente da temporalidade que, por si só, permite que falar de uma origem comum dos três êxtases, ou mesmo do «êxtase» em geral. Apesar das diferentes aparições nos três êxtases distintas, isso conservar-se válido.

ERIC PONTY
 
 

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