" Menino retirante vai ao circo de Brodósqui" apresenta uma estrutura poética organizada em doze seções numeradas em algarismos romanos, que criam um percurso narrativo-lírico intercalando texto e imagens. A obra estabelece um diálogo direto com as pinturas de Cândido Portinari, convertendo elementos visuais em expressão poética. O início é marcado por uma ode dedicada a João Cândido Portinari, filho do pintor, estabelecendo desde as primeiras páginas a conexão entre texto e artes visuais que permeia todo o livro.
Cada seção funciona como um quadro textual que complementa as pinturas reproduzidas, articulando uma narrativa fragmentada sobre a experiência de um menino retirante. O poema inicial, "Ode a Joaninha!", imprime um tom de desprendimento espiritual ("Eu me separo alegremente da pátria/E busco a praia amada"), retomado nas reflexões existenciais ao longo da obra.
Temas Centrais
A obra trata com sensibilidade da condição do migrante nordestino, especialmente da criança deslocada, alinhando-se à temática social presente nas pinturas de Portinari.
No poema I, questões existenciais surgem: "Por que se vai tão cedo de casa?/Do que busca? É ave no céu?", situando o deslocamento como metáfora da busca por sentido.
A espiritualidade surge como contraponto à realidade material dura, especialmente nas passagens que evocam figuras religiosas: "onde Jesus Cristo estava acenando" e nas imagens da natureza como manifestação divina. No poema VIII, até o sol e a lua desejam ser crianças: "_ Criador; quero ser garoto-;/murmura brilhante o sol", indicando como elementos cósmicos ampliam o valor da experiência infantil.
Linguagem
A linguagem combina traços da oralidade nordestina a uma sofisticação lírica que
remete à tradição modernista brasileira. Termos como "pasce" (variante de "pastar")
aparecem com frequência, criando um campo semântico que aproxima homens e
animais na mesma condição existencial: "Pascer, apascentar, o menino,/carneiro infeliz
pasce ao campo."
A sintaxe é frequentemente fragmentada, com inversões que provocam estranhamento
e intensificam a expressividade: "São dragões, unicórnios e carneiros". As interrogações
são recurso constante, como no poema II: "Não sente medo de ficar só,/vendo estrelas
sozinhas do campo?", estabelecendo um diálogo direto com as inquietações da
personagem.
Destacam-se o uso de neologismos e expressões regionais que ampliam a tessitura
verbal: "zingram caravelas dos mares distantes". Essa linguagem criativa estabelece
uma ponte entre o verbal e o visual, alinhada à plasticidade das imagens de Portinari.
Personagens
O menino retirante, protagonista sem nome específico, representa todas as crianças deslocadas pela miséria. Sua caracterização se dá por meio dos questionamentos e da relação com o entorno: "Por que se vai tão cedo de casa?/Do que busca? É ave no céu?". A ausência do nome próprio universaliza sua experiência, convertendo-o em símbolo de uma condição social. Os palhaços Frederico e Oto surgem como figuras simbólicas no poema XII, personificando o contraste entre a alegria aparente e a dor interior: "Na alma grito de palhaço,/público acha que é um truque,/gestos e charadas dos dois clowns,/de perto são santos, são homens." Através dessas figuras circenses é explorada a dimensão sagrada do sofrimento transmutado em arte. A menina com "fita amarela" e "tranças azuis" surge como contraponto feminino, evocando mistérios ancestrais: "Por que tem na fronte mistérios,/Inca ou Maia ou Egípcio na fronte,/retido não se revela o segredo." Sua presença introduz elementos de alteridade cultural e de gênero na narrativa predominantemente masculina. O músico solitário do poema IX simboliza a expressão artística como forma de resistência: "Entoado músico ao cair da tarde,/tão só abancado sem um amor,/assoprando na clarineta à melodia". Sua música traduz a dor em beleza, indicando um caminho de elevação pela arte.
Destaques
O diálogo com as pinturas de Portinari é o aspecto que distingue esta obra. Os poemas não se limitam a descrever as imagens, mas as reinterpretam e ampliam, como no poema VII, onde as crianças nos balanços são retratadas: "Garotos alçam ao ar,/mais longe, mais distante/é domínio certo ao alçar." Essa passagem estabelece uma conexão direta com a pintura que mostra crianças em balanços, convertendo o movimento pictórico em metáfora de libertação. A religiosidade apresenta uma mistura de referências cristãs com elementos da cultura popular e mítica: "A coroa de fadas me chama/E felicidade para todo o sempre,/Quando eu tiver terminado." Essa fusão cria uma espiritualidade sincrética que reflete a complexidade da realidade cultural brasileira. As imagens da natureza, especialmente sol, lua e animais, adquirem dimensão simbólica e, por vezes, antropomórfica: "O sol está lamentando./O sol e lua pascendo olham/da vez que um dia/deixaram de pular carniça." Esse animismo interliga o cosmos à experiência humana, sugerindo uma integração entre todas as formas de existência.
Considerações Finais
"Menino retirante vai ao circo de Brodósqui" constitui um exercício de ekphrasis – a representação verbal de imagens visuais – que promove um diálogo fecundo entre a poesia da obra e as pinturas de Portinari. Este livro amplia o universo visual do pintor por meio da palavra poética, adicionando novas camadas de significado às imagens icônicas do modernismo brasileiro. A obra transforma a experiência de deslocamento e marginalização social em matéria de reflexão estética e existencial, evitando o tom panfletário ou simplificador. Os poemas sustentam uma tensão constante entre o trágico da condição retirante e a dimensão lírica da percepção infantil, criando um espaço de resistência pela imaginação.
A linguagem, ao mesmo tempo regional e universal, conecta a experiência particular do migrante nordestino a questões humanas essenciais, como a busca por pertencimento, a relação com o sagrado e a transformação da dor em expressão artística. Essa capacidade de partir do local para alcançar o universal faz deste livro uma contribuição consistente à poesia brasileira contemporânea.
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