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sábado, dezembro 24, 2022

HOMEM DE HERODES - ( CONTO DE NATAL ) - ERIC PONTY

Era na montanha. Eu estudava então gramática latina com o senhor Juca Magalhães do céltico, e vivia castigado no reitoral. Há um me veio num eco da janela, choroso e suspirante. Minhas lágrimas caíam silenciosas sobre a gramática da nebrina, e, era o dia de Natal, e o senhor Juca Magalhães havia-me condenado a não acenar até que suspendesse daquela terrível conjugação.

Eu, perdido em toda esperança de consegui-lo, e disposto há algum como um santo ermitão, me distraía admirando o horto, donde cantava um Mirto que recorria aos saltos dos ramos duma nogueira centenária. As nuvens, pesadas e plúmbeas, iam a congregar-se sobre a serra de célticos num horizonte d´água, e os pastores, dando vozes aos seus rebanhos, abaixavam pressurosos pelos caminhos, encapuchados em suas capas de juncos.

No arco íris cobria o horto, e os nodais escuros e os mirtos verdes e úmidos pareciam tremer em um raio de alaranja luz.

Ao cair à tarde, o senhor Juca Magalhães atravessou o horto: andava encurvado embaixo duma grande guarda-chuva negro: se revolveu desde a cancela, e vendo-me na janela me chamou como há outro irmão. Eu reclinei temeroso. Ele me disse:

—Há aprendido isso?
—Não, senhor.
—Por que?
—Porque é mui difícil.
O senhor Juca Magalhães. - Sorrio bondoso.
—Está bem: amanhã o aprenderás. Agora acompanha-me a igreja.

Me conduziu com a mão para resguardar-me com guarda chuvas, pois principiava a cair uma ligeira chuvinha, e achamos o caminho adiante da Igreja estava acerca. Tinha uma porta de estilo Barroco, e, segundo dizia o senhor Juca Magalhães, era fundação da época de Alejadinho.

Entramos. Eu fiquei só no presbitério, o senhor bispo passou a sacristia falando com o acólito, recomendando-lhe que estivesse todo disposto para a Missa do Galo.

Pouco despois revolvíamos a sair.
Já não chova, e pálido crescente da lua começava a luzir no céu triste e invernal.

O caminho estava escuro, era um caminho de ferradura, pedregoso e com grandes charcos. De largo em largo falávamos de algum rapaz aldeão que deixava beber pacificamente junta cansada de seus bois.
Os pastores que retornavam do monte trazendo os rebanhos por distante, se detinham nas redondezas e arreavam dum lado suas ovelhas para deixar-nos passo. Todos saudavam com cristianismo:
— Bem-dito seja Deus!
— Alado seja!
—Siga mui orgulhoso o senhor Juca Magalhães e a sua companhia.
— Amém!
II


— Algo terrível ocorreu em minha vida! — Negros presságios de um destino horrendo e ameaçador pesam sobre mim qual nuvens sombrias, impenetráveis à benevolência de um raio de sol. Vou te contar o que se passou; tenho de contar o que vejo com tanta nitidez, muito embora me baste pensar nisso para que me aflore um riso demente aos lábios. Ah!, meu querido hei de dizer para que sintas, ainda que vagamente, quanto é nefasta a influência que esse acontecimento recente passou a ter em minha vida! Queria que estivesses aqui e visses com teus próprios olhos! Mas sei que vais me tomar por um visionário supersticioso. — Em suma, a experiência terrível que tive, e cujo resultado fatal ainda me esforço em vão para apartar de mim, é simplesmente que, há poucos dias, precisamente em 25 de dezembro, ao meio-dia, entrou no meu quarto com a intenção de levar minha alma. Não fiz com ele, nenhum pacto, com nada e ameacei jogá-lo escada abaixo, o que bastou para que ele tratasse de ir embora.

III

Talvez concluas que apenas conjunturas muito peculiares e estreitamente unidas à minha vida podem aferir importância a esse fato! A não ser na hora do almoço, nós, ou seja, meus irmãos e eu, quase não víamos papai durante o dia. Mas também, com muita frequência, papai nos dava livros ilustrados para folhear e punha-se muito calado e imóvel na poltrona, soltando baforadas tão grosseiras que todos acabávamos envoltos em uma neblina de fumaça. Nessas noites, mamãe ficava muito triste e, assim que o relógio dava as onze horas, dizia: “Vamos, meninos! Para a cama! Para a cama! O Homem de Herodes está chegando, eu sei!”

Nessas ocasiões, eu sempre ouvia barulho lá fora, passos lentos e pesados subindo a escada: só podia ser o Homem de Herodes, mas, pelo contrário, minha mente infantil desenvolveu a clara ideia de que mamãe só negava a existência do Homem de Herodes para que não ficássemos com medo; afinal, eu sempre o ouvia subir a escada. Procurando saber mais sobre o Homem de Herodes e sua relação com as crianças, finalmente perguntei à velha ama-seca de minha irmã caçula quem era o tal Homem de Herodes.

“Ora”, ela retrucou, “então não sabes? É um homem mau que aparece para as crianças que não querem ir para a cama, e as carrega com ele para levá-las ao Reino de Herodes no Inferno!

 Desde então, formei uma imagem horrenda do Homem de Herodes; e à noite, quando ouvia barulho na escada, tremia de pavor e espanto.

ERIC PONTY

POETA-TRADUTOR-LIBRETISTA ERIC PONTY

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