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segunda-feira, fevereiro 27, 2023

SOR JUANA DE LA CRUZ- 16 SONETOS - TRAD.ERIC PONTY

Juana Inés de Asbaje y Ramírez de Santillana ou Juana de Asbaje (de Asuaje, segundo alguns), chamada de A Fénix da América e também de A Décima Musa. Escritora barroca nova-espanhola (mexicana), poetisa e dramaturga da segunda metade do século XVII. Nasceu em um povoado do vale do México, San Miguel Nepantla, próximo a Amecameca, e aprendeu náhuatl com seus vizinhos. Filha natural, sua mãe foi a "criolla" Isabel Ramírez de Santillana e seu pai Pedro Manuel de Asbaje y Vargas Machuca, militar espanhol da província basca de Guipúzcoa (Vergara). Descobriu a biblioteca de seu avô e assim tornou-se aficcionada pelos livros. Aprendeu tudo o que era conhecido em sua época, isto é, leu os clássicos gregos e romanos e a teologia do momento. Aprendeu português por conta própria, assim como latim, o que fez como autodidata em vinte lições. Como se sabe a partir dos dados que se mencionam em algumas de suas obras, o fez escutando as aulas que eram dadas à sua irmã, isto às escondidas. No entanto, também podemos saber disso por Marco Aurelio Almazán.

Quando adolescente, esteve na corte vice-real mexicana, e sobre esse tempo há muitos poucos dados biográficos, ainda que se saiba que foi dama de companhia da vice-rainha Marquesa de Mancera. Quis entrar na Universidade e em algum momento passou pela sua cabeça vestir-se de homem, mas, no final das contas, concluiu que era menos disparatado tornar-se monja. Depois de uma tentativa fracassada com as Carmelitas, cuja regra era de uma rigidez extrema que a levou a um período de convalescência, ingressou na Ordem das Jerônimas, onde a disciplina era algo mais relaxada. Tinha uma cela de dois andares e governanta. Ali passou a sua vida, escrevendo versos sacros e profanos, canções a cada Natal, autos sacramentais e duas comédias de capa-e-espada. Também serviu como administradora do convento, com bastante habilidade.

Com a erudição acumulada durante anos de estudo, correspondia-se com os grandes nomes do mundo hispânico, tendo escrito até ao Papa. Sóror Juana escreveu literatura centrada na liberdade, o que era um prodígio naquela época. No seu poema Hombres Necios ("Homens Estúpidos"), ela defende o direito da mulher a ser respeitada como ser humano e critica o sexismo da sociedade do seu tempo, gozando dos homens que condenam a prostituição, ao mesmo tempo em que aproveitam a sua existência. Além de livros religiosos como a Bíblia, que representavam certamente mais de 90% dos livros que chegavam à América na época, há relatos de que ela possuía obras atípicas para um cidadão da América do século XVII, como escritos de Leibniz, dentre outros.

Sóror Juana viu-se envolvida em uma disputa teológica, a raiz de uma crítica privada que realizou sobre um sermão do muito conhecido pregador da época Antônio Vieira, que foi publicada pelo bispo de Puebla, Manuel Fernández de Santa Cruz, que a prefaciou sob o pseudônimo de "Sóror Filotea", o que provocou a reação da poetisa através do escrito Respuesta a Sor Filotea ("Resposta a Sóror Filotea"), onde faz uma inflamada defesa do trabalho intelectual da mulher. Por esse valoroso texto e por outras obras suas como a acima mencionada Hombres Necios, Sóror Juana pode ainda ser considerada, com justiça, como a primeira feminista das Américas.

Pouco antes de sua morte, Sóror Juana foi obrigada por seu confessor a desfazer-se de sua biblioteca e de sua coleção de instrumentos musicais e científicos. Deve-se lembrar que, naquele tempo, a Santa Inquisição estava ativa. Morreu aos quarenta e três anos, durante uma epidemia, tendo, antes disso, chegado a socorrer várias de suas irmãs.

Entre suas obras se conta uma grande quantidade de poemas galantes, poemas de ocasião para presentes ou aniversários de seus amigos, poesias de salão sobre costumes ou amizades sugeridas por outros, letras para se cantar em diversas celebrações religiosas e duas comédias chamadas Amor es más Laberinto ("Amor é mais Confusão") e Los Empeños de una Casa ("As Obrigações de uma Casa").

Em que satisfaz com receio à retorica do canto

Esta tarde, meu bem, quando te falava,
Feito em teu rosto de tuas ações via,
Que com palavras não te persuadia,
Que o coração me vezes desejava;

E Amor, que meus intentos ajudavam,
Venceu o impossível parecia,
Pois entre o canto, que dor se vertia,
Meu coração desfeito destilava.

Baste já de rigores, meu bem, baste,
Não te atormentem mais dos céus tiranos,
Nem vil receio tua calma contraste

Com sombras néscias, com indícios vãos,
Pois já em líquido humor viste e tocaste
Meu coração defeito dentre tuas mãos.

Ao seu retrato

Este que vês, engano colorido,
que dessa arte ostentando seus primores,
com falsos silogismos destas cores,
és cauteloso engano do sentido.

Este, em que de lisonja há pretendido,
excursar desses anos dos horrores,
e vencendo do tempo dos rigores
triunfar desta velhice e deste olvido,

És um vão do artifício do cuidado,
és uma flor que ao vento delicada,
és um resguardo inútil para é dado.

És uma néscia diligência errada,
és um afã caduco, bem olhado,
és cadáver, és pó, é sombra, és nada.

Quem contém uma fantasia contenta com amor decente

Distinta, sombra do meu bem esquivo,
imagem do feitiço que mais quero,
bela ilusão por quem alegre morro,
doce feição por quem penosa vivo.

Se ao ímã de tuas graças, atrativo,
serve meu peito obediente desse aço,
para que me enamoras lisonjeiro,
se hás de burlar-me já fugitivo?

Mas ostentar não podes, satisfeito,
de que triunfa de mim tua tirania;
que ao que deixas ilusas laço estreito.

Que tua forma fantástica uniria,
pouco importa burlar braços e peitos
se te lavra prisão minha ilusão.

Prossegue o mesmo assunto e determina que prevaleça a razão contra o gosto

Ao ingrato que me deixa, busco amante;
ao que amante me segue, deixo ingrata;
constante adoro há quem meu amor maltrata;
maltrato há quem meu amor busca constante.

Ao que trato de amor, falo diamante,
e sou diamante ao que do amor me trata;
triunfante quero ver ao que me mata,
e mato ao que me quer ser tão triunfante.

Se há este pago, sofre meu desejo;
se rogo aquele, meu decoro enojo:
de ambos modos infeliz eu me vejo,

Porém já, por melhor partido escolho,
de quem não quero, ser violento emprego,
que de quem não me quer, vil me despojo.

Ensina como um só emprego em amar é razão convivência

Fabio: No ser de todos adoradas,
são todas as beldades ambiciosas,
porque tem de se arar por ser ociosas
se não as vem destas vítimas tão findas.

E assim, se de um só são seres amadas,
Que vivem da Fortuna querelante,
porque pensam que mais que ser formosas
constitui-se deidade ser rogadas.

Mas já sou em aquisição tão medida,
vendo há muitos, meu zelo desvanecido
e só quero ser tão correspondida.

Daquele de meu amor atenção cobra;
porque é o sal do gosto ao ser querida:
que dana ao que se falta e ao se que sobra.

De amor, posto antes sujeito indigno, é emenda alardear arrependimento

Quando do meu erro e tua vileza veio,
comtemplo, Silvio, de meu amor errado,
qual grave és a malícia do pecado,
qual violenta à força deste desejo.

A minha memória apenas eu creio
que pudesse caber aqui meu cuidado
a última linha do depreciado,
ao término final de um mal emprego.

Já bem quisera, quando chego verte,
vendo meu infame amor, poder negá-lo;
mas logo a razão justa me adverte.

que só se remedia em me publicá-lo:
porque do grande delito de querer-te
só és bastante pena, confessá-lo.

Prossegue em seu pesar e diz que um não quisera aborrecer tão indigno sujeito, por não lhe ter assim acerca do coração

Silvio, já te aborreço, e um condeno
ele que estes da sorte em meu sentido:
que difama ao ferro ao escorpião ferido,
e há quem rastro, mancha imundo o barro.

És como do mortífero veneno,
que dana há quem o verte inadvertido,
e no final, és tão mal e és tão pérfido
que há um para aborrecido não és bom.

Teu aspecto vil minha noção ofereço,
ao que com susto me o contradiz
por dar-me já a pena que mereço:

pois quando considero o que me diz,
não só a ti Carrera, que te aborreço,
porém a mim pôr o tempo que te quis.

De uma reflexão dá pista com que mitiga a dor duma paixão

Com a angústia desta mortal ferida
dum agravo de amor me lamentava
e por ver si na morte que me chegava,
procurava que fosse mais crescida.

Toda no mal a da alma divertida
pena por pena dor sua que somava
e em cada circunstância ponderava
que sobravam mim mortes a uma vida.

E quando ao golpe de um e doutro tiro
rendido o coração dava penoso,
sinais de dar do último suspiro.

Não sei com que destino prodigioso
voltei em meu acordo e disse: Que me admiro?
Quem em amor há sido mais feliz?

Efeitos mui penosos do amor, e que não por grandes se igual com os tesouros de quem lhe causa

Ver-me, Alcino, que atada da corrente
de amor, passo em seus ferros oprimidos,
misera escravidão, desesperada
de liberdade, e de consolo tão alheio?

Ver-me da dor e angústia n´alma plena,
tão ferozes tormentos lastimados,
e entre as vivas chamas abrasada
jugar-se por indigna de sua pena?

Ver-me seguir sem alma um desatino
que já mesma me condeno ao meu estranho?
Ver-me derramar sague no caminho,

Seguindo dos vestígios dum engano?
Mui admirado está? Pois me vês, Alcino?
Mais merece da causa de meu dano.

Ao que em vão, quer reduzir o método racional ao pesar dum zeloso

Que é isto Alcino? Como tua cautela
Se deixa vencer de um mal é zeloso
Havendo com extremos de furioso
As demonstrações mais que da loucura?

Em que se ofendeu Celia, que se apura?
O por que amor das culpas de enganoso
Se não asseguro nunca, poderoso
A eterna possessão de tua formosura?

A posição de coisas temporais
Temporal és Alcino, e és do abuso
Ao querer cultivá-las sempre iguais

Assim que do teu erro e da tua ignorância,
Pois Fortuna e Amor, de coisas tais
Domínio não há dado, senão o uso.

Só com aguda generosidade esforça o ditame que seja a ausência maior que o mal ciúmes

O ausente, do zeloso, se provoca,
Aquele com dor, este com a ira,
Presume-lhe à ofensa que não lhe olha,
sente aquele à realidade que toca.

Este tempera, tão sua fúria louca,
Quando em seu discurso em favor delira
E sem intermissão aquele suspira
Pois nada em sua dor se fez opaca.

Este que aflige dúbio sua paciência
Aquele sofre certos seus desvelos
Este que a dor opõe resistência

Aquele sem ela sofre desconsolos,
E se és pena de dano, ao fim da ausência,
Logo é maior tormento dos ciúmes.

Que dá meios para amar sem muita pena

Eu não posso ter-te e nem desejar,
Nem sei porque, ao desejar-te lhe ter
Se encontra um não sei que para querer-te,
E muitos se sei para esquecer-te.

Pois nem queres ansiar nem me emendar,
Eu contemplarei meu olhar da sorte,
Que a metade se incline aborrecer-te.

Ao que outra metade se incline a amar-te,
Se ele se lida queremos, faça modo,
Que és morrer ao estar sempre porfiando:
Não se fale mais ardor nem suspeita.

E quem a metade ao todo, não quer todo,
E quando me está lá está fazendo
Sabe que estou fazendo a desfeita.

Discorre inevitavelmente o canto à vista de quem ama

Mandas, Anarda que sem canto assista,
A ver teus olhos, e do qual suspeito
Que ignorar a causa que és quem há feito
Querer já empreenda tanta conquista.

Amor, senhora sem que me resista,
Que tem fogo do coração desfeito,
Como faz ferver sangue está no peito,
Vaporiza em ardores pela vista.

Buscam logo meus olhos sua presença,
Que centro julgam de seu doce encanto,
E quando minha atenção te reverência.

E que dos visuais raios, entre tanto
Como falam sua branca residência,
O que saiu vapor, se volte canto.

Um zeloso refere comum pesar que todos padecem, e adverte a causa ao fim que pode ter luta dos efeitos

Já não duvido, Lisarda, que te quero,
Ao que eu sei de que tens me agravado,
Mas estou tão amante de tão arraiado
Que efeitos que distingo não profiro.

De ver que ódio e amor te tenho, deduzo
nenhum estar pode estar em sumo agrado,
pois não pode o ódio tê-lo ganhado,
sem haver-lhe perdido amor primeiro.

E se pensas que n´alma que se quis,
Há de estar sempre sua afeição ligada,
De tua satisfação vã eu lhe aviso.

Pois se amor e ódio hão dado a entrada,
O que baixou do sumo a ser remisso,
De o remisso passará a ser do nada.

Soneto que explica há mais sublime qualidade do amor

Já adoro a Lisi, mas eu não pretendo,
Que Lisi corresponda com fineza,
Pois se julgo possível sua beleza,
Ao seu decoro e minha apreensão ofendo.

Não empreender, somente, és o que empreendo:
Pois sei que merecer tanta grandeza,
Nenhum mérito basta, e és simpleza
Obrar com o mesmo que eu não entendo.

Como coisa concebo tão sagrada,
Sua beleza que não me quer ousadia,
A esperança dar uma leve entrada:

Pois cedendo a sua minha alegria
Por não alcançar ao ver mal-empregada
Há um penso que sentira vê-la minha.
SOR JUANA DE LA CRUZ-TRAD.ERIC PONTY
ERIC PONTY-TRADUTOR-LIBRETISTA




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