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quarta-feira, março 07, 2018

DO AMOR - PEDRO SALINAS - TRAD. ERIC PONTY

Quanto no instante te hei olhado
Sem observa- lê, na imagem
Tão exata e tão inacessível
Que te refletiste ao espelho!

«Beija-me», dizes. Te beijei,
E então te beijando penso
Nos frios que serão
Teus lábios no espelho.

«Toda à alma é a ti»,
Murmuras, porém ao peito
Sinto-me qual vazio só
Me legará desta alma
Que não me ofereces.

Esta alma que se vela
Desfazendo das claridades
Em tua forma do espelho.

A Difícil


Nos extremos se acham
De ti, por eles te buscam.
Amar-te: que partir e vir
Em ti mesma de ti mesma!

Ao dares contigo, acerca
Que distante farás de ir!
Amor: distâncias, vaivém
Sem parar.

No meio do caminho, nada.
Não, tua voz não, teu silêncio.
Redondo, terso, sem partisse,
Como ar, são perguntas
Apenas lhe rizam,
Como pedras, perguntas
No fundo se as guardara.
São superfície em silêncio
E eu olhando-me nela.
Nada, teu silêncio, sim.

O todo é teu grito, sim.
Afiado num silêncio,
Acero, raio, seta,
Rasgador, desgarrador,
Que exatidão repentina.

Rompe ao mundo a entranha,
Ao fundo deste mundo acima,
Onde ele chegou, fugacíssimo!
Todo, sim, teu grito, sim.
Porém tua voz não quero.
PEDRO SALINAS
TRAD. ERIC PONTY

A POESIA DOS SÉCULOS DE OURO - TRAD. ERIC PONTY

As poesias dos Séculos de Ouro possuem como atributo mais destacado a convivência dos distintos modelos, tendências e correntes que podemos sintetizar num seguinte quadro:

- Poesia em Metros castelões (octossílabos, hexassílabos e tetrassílabos)

1. De raiz e sabor popular:
2. Villancicos
3. Canções Paralelísticas
4. Romances

– De carácter culto: poesia do Cancioneiro (redondilhas, glosas, canções trovadorescas…)

A Poesia em Metros italianos

– Lírica Petrarquista: Sonetos e canções
– Lírica de inspiração clássica:
Virgiliana: églogas
Horaciana: odes, epístolas

Estas variedades, e outras que nos incumbem neste esquema, se perpetuaram ao largo dos séculos áureos e foram cultivadas pela maior parte de nossos poetas. Quase todos utilizaram indistintamente hendecassílabos e octossílabos, como formas tradicionais castelhanas e moldes italianos, ao que em alguns casos os resultados estéticos em uma ou duma outra corrente foram desiguais.

GIL VICENTE
(Lisboa? Guimaraes? Barcelos? h. 1465 - Lisboa, 1536)

Auto da sibila Cassandra

4
Cantam as lavandeiras

LAVANDEIRAS.

Falcão que se atreve
Com garça guerreira,
Os Perigos espera.
Falcão que se voa
Com garça a porfia,
Caçar a queria
E não a receba.
Mas quem não se vela
Da garça guerreira,
Os perigos espera. […]

CLITA.
A caça de amor
É de altaneira,
Trabalhos de dia,
De noite faz dor.
Falcão caçador
Com garça tão fera,
Os perigos espera.
5
Canta Cassandra.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.
Mais quero viver segura
Nesta serra minha soltura,
Que não estar ventura
Se casarei bem ou não.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.
Mãe, não serei casada
Por não ver vida cansada,
O quiçá mal-empregada
A graça que Deus me deu.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.
Não será nem é nascido
Tal para ser meu marido;
E, pois, que tenho sabido
Que a flor eu me a só.
Dizem que me casei só:
Não quero marido, não.

6
Acabada assim a adoração, cantam a seguinte cantiga que fez o autor e a qual ele mesmo compôs a música
Mui graciosa é a donzela,
Como é bela e formosa!
Diz ao teu, marinheiro
Que nos templos vivias,
Se o templo a vela
A estrela é tão bela.
Diz teu, o cavaleiro
Que as armas vestias,
Se o cavalo as armas
A guerra é tão bela.

Fray Luis de León
Nasceu Belmonte de Tajo (Cuenca), em 1527 o 1528

I
A Vida Retirada

Que descansada vida
A de que ouve o mundanal ruído,
E segue a escondida
Senda, por onde hão ido
Os poucos sábios que no mundo hão sido!
Que não lhe enturva o peito
Dos soberbos grandes estado,
Nem do doirado coberto
Se admira, fabricado
Do sábio Mouro, em roupa sustentado.
Não cura sem a Fama
Canta com voz seu nome pregoeira,
Nem cura si adultera
Na língua lisonjeira
Do que condena a verdade sincera.
Que presta ao meu contento
Se sou do vão dedo assinalado;
Sem na busca d’este vento
Ando desalentado
Com ânsias vivas, com mortal cuidado?
Ô monte, ô fonte, ô rio,
Ô secreto seguro, deleitoso!
Roto quase ao navio,
Ao vosso alimento repousa
Esquivo deste mar tempestuoso.
Um não rompido sonho,
Um dia puro, alegre, livre quero;
Não quero ver o aceno
Vagamente severo
De quem ao sangue ensalma, o dinheiro.
Desperta-me as aves
Com seu cantar saboroso não aprendido,
Não os cuidados graves
De que é sempre seguido
Ele que ao aceno arbítrio está atendido.
Viver quero comigo;
Gozar quero do bem que devo ao céu,
A consolar, sem testemunha,
O Livre de amor, do zelo,
Do ódio, de esperanças, de receio.
Del monte na ladeira
Por minha mão plantado tenho um horto,
Que com a primavera,
De bela flor coberto,
Já demostra na esperança o fruto certo.
E como codiciosa
Por ver e acrescentar sua formosura,
Desde a cobre airosa
Uma fonte pura
Há chegar correndo se apressura.
E logo, sossegada,
Ao passo entre árvores torcendo,
No chão da caminhada,
De verdura vestindo
E com diversas flores já espargendo.
O ar ao horto orea
E oferece mil odores ao sentido;
Ás árvores meneiam
Com um manso ruído,
Que douro e do cetro pôs olvido
Tenha-se seu tesouro
Os que dum falso ramo se confiam:
Não é meu ver o choro
Dos que desconfiam
Quando o cirzo e o vento Sudeste porfiam.
A combatida antena
Cruze, na cega noite ao claro dia
Se torna; ao céu sonha
Confusa vozeria,
E ao mar enriquecem a porfia.
A minha uma pobrezinha
Mesa, de amável paz bem abastada,
Me baste; e a vasilha
De fino ouro lavrada
Sendo de quem ao mar não teme airada.
E então miserável
Mente se estão os outros abrasando
Com sede insaciável
Do perigoso mando,
Tendo eu a sombra este cantando.
Á sombra alargar-se,
De Hidra e Lauro eterno coronado
Posto ao atento ouvido
Ao som doce, acordado,
Do plectro sabiamente meneado.

Garcilaso de la Vega, 1574


COPLA II

A CANÇÃO, FAZENDO-SE CASADO SUA DAMA

A Culpa deve ser quereis,
Segundo que em mim haveis;
Mais adiante o pagareis
De não saberem conhece-los,
Por mal que me conheceis
Por querer, ser perdido
Pensava, que não há culpado;
Mais que todos haveis sido,
Assim me haveis mostrado
Do que o tenho bem sabido.
Quem pudesse não os quereis
Tanto como vós sabeis,
Por folgar-me que pagueis
O que não hão de conhece-los
Com do que não conheceis!

Jorge Manrique

A época de maior atividade dos Manrique se situa entre o final do reinado de Juan II de Castelã e o começo dos dois Reis Católicos, centrando-se nos tempos turbulentos de Enrique IV.

DE DON JORGE MANRIQUE QUEIXANDO-SE DO DEUS DO AMOR

Ô mui alto Deus do Amor,
Por quem minha vida se guia!
Como sofres teu, senhor,
Sendo justo julgador,
Em tua lei tal erigia?
Que se perda o que serviu,
Que se olvide o servido,
Que viva quem enganou,
Que morra quem bem amou,
Que valga no amor fingido?

Pois que tais sem rações
Conscientes passar assim,
Suplico-te em perdões
Minha língua, se com paixões
Difiro-lhe maus de ti.
Que não sou eu que vós dizeis,
Senão tu, que me fizestes
As obras como inimigo:
Tendo-me por teu amigo,
Me trocaste e me vendeste.
Se fores Deus de verdade.

Por que consentes mentiras?
Se tens em ti bondade,
Por que sofres tal maldade?
O que aproveitam tuas iras,
Tuas sanhas tão espantosas
Com que castigas e feres?
Tuas forças tão poderosas
—Pois comportas tais coisas—
De para quando as queiras?

FRANCISCO DE QUEVEDO
POEMAS METAFÍSICOS, MORAIS, RELIGIOSOS E HERÒICOS


Representa-se na brevidade do que se vive e do qual nada parece do que se viveu.

Ah da vida! … Nada me responde?
Aqui do antanho que hei vivido!
Fortuna mui tempos há mordido,
Horas minhas loucuras as esconde.
Que sem poder saber como nem onde
A saúde e a idade se hão ruído!

A falta à vida, assistir do vivido,
E não há calamidade não me ronde.
Haver fui; amanhã não hei chegado;
Hoje se está indo sem parar um ponto:
Sou um foi e um será e um é cansado.

Em do hoje e amanhã haverá, junto
Panos e mortalha, e hei quedado
Presentes sucessões de defunto.

LUIS DE GÓNGORA

Córdoba, à pátria de Séneca e Lucano, vê nascer em 1561 a Luis de Góngora, filho dum prestigioso jurista de família nobre ao que não gozasse duma posição económica desafogada.

Na técnica do soneto supera aos seus contemporâneos. Desde os mais remotos, de 1582, se observa, junto à influência petrarquista (imita aos italianos Tasso, Ariosto e Sannazaro), sua fixação ao original no léxico, as imagens utilizadas e colorido, sobre todo quando expressa o sentimento amoroso, bem, ou seja, a celebrar seu gozo como a cantar o fracasso, seu medo, suas dúvidas ou na sua decepção como amante.

II
DE SAN LORENZO EL REAL DEL ESCORIAL (1589)

Sacros, altos, dourados capitães,
Que as nuvens borrais seus arrebóis,
Febo os temeu por mais luzentes sois,
E deste céu por gigantes mais cruéis.

Depois teus raios, Júpiter; não zeles
E teus, Sol; dum templo são faróis,
Que ao maior mártir dos espanhóis
Ergueu lhes o maior Rei um dos fiéis,

Religiosa grandeza do Monarca
Em cuja destra real ao Novo Mundo
Abrevia, e ao Oriente se lhe humilha.

Perdoe-lhe o tempo, lisonjeei à Parca,
A beldade de esta Oitava Maravilha,
Os anos de este Salomão fez Segundo.

III
A LA GRANDEZA Y DILATACIÓN DE MADRID (1610)

Nilo não sofras margens, nem muros
Madrid, ô peregrino, tu que passas,
Que dás menor inundação das casas
Nem há um os campos Tejo estão seguros.

Émula ao virem, séculos futuros,
De Menfis não, que ao término le tasas;
Do tempo sim, que profundas destas crenças,
Não são em vão pedernales duros.

Ô Dossel destes reis, de filhos estirpe
Há sido e sendo zodíaco do luzente
Da beldade, do teatro de Fortuna.

Á inveja daqui veneno dente
Alimenta só, privanças importunas.
Caminhe em tua paz, referir tua gente.

TRAD. ERIC PONTY

A IMITAÇÃO DA NOSSA SENHORA LUA - JULES LAFORGUE - TRAD. ERIC PONTY

UMA PALAVRINHA AO PÔR DO SOL

Ô Sol! É Militar coberto de medalhas e pontas,
O fizeste sem à classe, saberás que Vestais,
Há quem há Lua, de falaz dum olhar de felina,
Sendo dum roseiral divinal duma Única Catedral.

Saberás que dos Pierrôs, falenas lhe dominaram,
Ninfeias brancas, donde Gomorra jaze adormecida,
E dos Bem-aventurados que pascidos neste Éden
São renúncias, sempre. Primaverais, te execram!

E que te hão retirado os teus peculiares desprezos,
Segunda, Perdulário, Mascarra, Rastaqueras
Sendo esta cascavel doirada, que ti pôs tão reles
Sóis feita desta pobre Terra e tua ufana lunar.

Andas perseguindo dando crepúsculos inúteis
Nos dias desta ressaca das Festas Nacionais,
Adelgaçando estação ao soltares teus dramas,
Nessas grandes Apoteoses ao fins Umbilicais.

Achegas já, Febo! Deverias, deus do mal Despertar,
Observe-nos este Port-Royal que dos divinos estetas,
Que em teu Decamerão inventaram à luz da Lua
Diziam postar qualquer preço, sem mais, à tua cabeceira.

Ti ficaras muitos dias por durar, só eu percebi;
Porém cresceste na tribo das antigas tradições,
Do «Absoluto, ao que? », sonhando-se Amor e Arte,
Neste aglomerado Inorgânico que foste existir.

Ampara por hoje, vegete, ausente-se conformamos
Com o refregaste nas colinas de Teu Papanatismo,
Isto que o Homem já te avisaste na frente do Poente,
Aposto há quem o jamais lhes tiveras desconfiado.

— Enterraste que lhe diziam ser duma frase estupenda,
Deste osso vistoso, porém, sem essência nenhuma,
Muita conversa vã, porém, tudo não sejais teatro!
A Pureza Febo, sem mais! Os comentários sobejam.

Ô Fantasma do Tempo, onde. Ser, foste castigado,
Com  «Febo, percorrei já! » Contestarás teu retorno
És deste antigo cresceste et multiplicamini,
Para ir-se inocular-se na tua frescura Lunar!

AS LITANIAS DAS QUARTOS LUAS

Ô Lua tão santificada
Quais destas Insônias,

Á branquidão do medalhão
Dos endêmicos,

Ah Estrela fóssil,
Que tudo nos exila,

Esmeralda Sepultura
De Salambó,

És sóis só Una guardiã
Dos Profundos Mistérios,

Ô Madonna e Ô Miss
Sóis Diana-Artemisa,

Sóis Vigilante Santificada
Destas nossas Orgias,

Esta tua má avantesma
Ti amargurarás, só.

Ah, Vós, ô Prestados Sóis Dama
Que botaste em nossas terras,

Sendo o Filtro nos açodar
Destas nossas alucinações,

É Sóis Bovina e Roseiral,
Destes Salmos Derradeiros,

Na formosura teu olhar de felina
Sendo quais das Nossas redenções.

Se constituíres no Uno socorro
Destas nossas unas crenças,

Sóis qual brancura do edredom
Deste nosso Grande Perdão!
JULES LAFORGUE
TRAD. ERIC PONTY

terça-feira, março 06, 2018

PAUL VERLAINE - Poemas - TRAD. ERIC PONTY

NA CLAREZA DA LUA

Vossa alma é qual uma vista esquisita,
Qual querem subjugar disfarces e das danças,
Tocam teus alaúdes, giram, quase tristes,
Debaixo logram fantásticos disfarces.

E, entretanto, vão cantando, em tom menor,
Do amor vitorioso e vida desta cumprida,
Não tem o aspecto crer em toda tua desgraça,

Tua canção se perdeu no clarão da Lua,
E num claro da lua formoso fez tal paz,
Onde, dentre ramagens, sonham todos pássaros.

E soluçaram em êxtases em todas fontes,
Com frescos jogos d’águas destes mármores.

O AMOR POR SONHOS

No vento noturno derrubou daquele Amor
Nos sorriam mais misteriosos do parque,
Então iam traçando malignamente teu arco,
E cujo aspecto tanto nos intrigara um dia.

O vento, doutra noite, derrubou. E o vento
Dum dia aglomerar pó do mármore. Triste
Resultou o pedestal, donde um nome de artista,
Apenas se decifra à sombra desta tua árvore.

É tristeza ver-te erguida e só do pedestal,
Chegam e vão sombrios em teus pensamentos
E dentre meus sonhos, há um pesar profundo,

Anunciava-se um prevenir ermo dum fatal.
É triste, sim. E tu mesma resultas comovida,
Ante tal quadro, ao do qual teus olhos frívolos
Sigam a mariposa que, ouro e púrpura, voa
E por entre dos resíduos conservam passeio.

EM SORDINA

Tranquilas à penumbra
Proporcionam os ramos,
Encharcam nosso amor
Dum profundo silêncio.

Fundam-se almas, latidos
Sentidos exaltados
Na vaga languidez
Dos arbustos e pinheiros.

Entornam, pois, teu olhar,
Dos braços põem num peito,
Coração fez dormido.

Lançam vagos anéis,
Deixem persuadir,
Sopro avassalador,
Teus pés vêm rezar
Vaivém roxo céspede.

Quando, pompa, à tarde
Baixo negros robes,
Voz em desalento,
Entoam ao teu cantar.

COLÓQUIO SENTIMENTAL

Por daquele velho parque, ermo glacial,
Das sombras vão cruzar faz-se do momento.
Daquele velho parque tão ermo e glacial,
Os Fantasmas lhe evocam este teu passado.

— Recordas, todavia, os êxtases de antes?
— Há vem, agora, careceria recordá-los?
— Bate teu coração só ouvir meu nome?
É minha alma, teu sonho, que vês? — Não.

— Ah, gentil dia indizível alegria,
Nos dois uníamos bocas! —Poderia ser.
— Quando era céu azul, esperança infinita!
— Espera partiu, rumo aos céus nublados.

De Ombro com ombro se iam, da Avena insana,
E tão só noite ouviam entre tuas palavras.

PAUL VERLAINE
TRAD. ERIC PONTY

domingo, março 04, 2018

UM CONTO DE NATAL - Ramón María del Valle-Inclán - TRAD. ERIC PONTY



Era numa montanha galega. Eu estudava então gramática latina com o senhor ar cipreste do céltico, e vivia castigado no litoral. Há um me veio num eco da janela, choroso e suspirante. Minhas lágrimas caíam silenciosas sobre a gramática da neblina, aberta em cima do alféizar. Era o dia de Natal, e o senhor ar cipreste havia-me condenado a não acenar até que suspendesse daquela terrível conjugação: «Fero, fers, tuli, latum».

Eu, perdido em toda esperança de consegui-lo, e disposto há algum como um santo ermitão, me distraía admirando o horto, donde cantava um Mirto que recorria aos saltos dos ramos duma nogueira centenária. As nuvens, pesadas e plúmbeas, iam a congregar-se sobre a serra de céticos num horizonte d´agua, e os pastores, dando vozes a seus rebanhos, abaixavam presunçosos pelos caminhos, encapuzados em suas capas de juncos.

No arco íris cobria o horto, e os nodais escuros e os mirtos verdes e úmidos pareciam tremer em um raio de alaranja luz.

Ao cair à tarde, o senhor ar cipreste atravessou o horto: andava encurvado embaixo duma grande guarda-chuva azul: se revolveu desde a cancela, e vendo-me na janela me chamou com a mão. Eu reclinei temeroso. Ele me disse:

 — Há aprendido isso?
— Não, senhor.
— Por que?
— Porque é mui difícil.
O senhor ar cipreste sorrio bondoso.
— Está bem: amanhã o aprenderás. Agora acompanha-me a igreja.

Me conduziu com a mão para resguardar-me com guarda chuvas, pois principiava a cair duma ligeira chuvinha, e nos achamos o caminho adiante.

A Igreja estava acerca. Tinha uma porta chata de estilo românico, e, segundo dizia o senhor ar cipreste, era fundação da rainha dona Urraca.

Entramos. Eu fiquei só no presbitério, o senhor arcebispo passou a sacristia falando com o acólito, recomendando-lhe que estivesse todo disposto para a Missa do Galo.

Pouco depois revolvíamos a sair.
Já não chova, e pálido crescente da lua começava a luzir no céu triste e invernal.

 O caminho estava escuro, era um caminho de ferradura, pedregoso e com grandes charcos. De largo em largo falávamos de algum rapaz aldeão que deixava beber pacificamente junta cansada de seus bois.

Os pastores que retornavam do monte trazendo os rebanhos por distante, se detinham nas redondezas e arreavam dum lado suas ovelhas para deixar-nos passo. Todos saudavam com o Cristianismo:

 — Bem-dito seja Deus!
— Alado seja!
— Siga mui orgulhoso o senhor ar cipreste em sua companhia.
— Amém!

Quando chegamos ao Peitoral era noite cerrada. Micaela, a sobrinha do senhor ar cipreste, transpunha-se dispondo à cena. Nos sentamos na cozinha ao amor do lume: Micaela me olhou sorrindo:

— Hoje não havendo estudo, verdade?
— Hoje, não.
— Ar renegados latim, verdade?
— Verdade!

 O Senhor arcipreste nos interrompeu severamente:

E quando já cobrava alento o senhor ar cipreste para edificarmos com uma larga plástica cheia de ciência teológica, sonharam embaixo da janela alegres conchas e buliçosos pandeiros. Uma voz cantou nas trevas noturnas:

Nós aqui viemos,
Nós aqui chegamos,
Sim nos dão licença
Nós aqui cantaremos!

O Senhor ar cipreste lhes fraquejou por si mesmo a porta, e um corro de zagais invadiu aquela cozinha sempre hospedeira. Viam duma aldeia distante; ao som dos pandeiros que lhe cantaram:

Falade vindo abaixo,
Andante passinho,
Porque não despertem
O nosso menino,
O nosso menino,
O nosso Jesus,
Que adormece nas palhas
Sem olhar-se e Sem luz.

Silenciaram um momento, e entre o júbilo das conchas e dos pandeiros retornaram a cantar:

Se não fora porque tenho
Esta cara de aldeão,
Dar-lhe-ei quatro beijinhos
Nessa cara de manteiga.
Vamos daqui para aldeia
Que xa vimos galantear,
Está Jesus a adormecer
E podemo-lo despertar.

Atrás havia cantado, beberam largamente daquele vinho agrimo, fresco e são ao Senhor ar cipreste balançava, e refocilados e quentes, foram-se fazendo sonar as conchas e os pandeiros. Há um ouvíamos o coxeio de suas madrastas nas escadarias do pátio, quando duma voz entoou:

Esta casa feita de pedra
O diabo ergueu-lhes um ardil,
Para que dormissem juntos
Dum cipreste e sua sobrinha.

Ao ouvir o casal, o Senhor ar cipreste estranhou o aceno. Micaela dirigindo colérica, e abandonando à vasilha donde erva clássica compota de maças, correu pela janela ressoando:

— Mal falados! … Mal ensinados! … Assim vos salgais ao caminho lobos raivosos!

O senhor ar cipreste, sem despregar os lábios, se passava picando um cigarro com a unha e refregando o pó entre as palmas. Ao terminar, chegou-se ao fogo e retirou um carvão, que lhe serviu de candeia. Então se fixou em meus seus olhos enfocados embaixo das cedidas flautas crescidas. Eu tremi. Senhor ar cipreste me disse:

— Que fizeste? Andas a buscar a neblina.

Saiu suspirando. Assim terminou minha Noite de Natal na casa do senhor ar cipreste de céltico, Q. S. G. H

 Ramón María del Valle-Inclán
 TRAD. ERIC PONTY

quinta-feira, março 01, 2018

O Paraíso Perdido - Rafael Alberti - TRAD. ERIC PONTY

Por Meio destes séculos,
Pelo Nada do Mundo,
Sem sonho, hei buscar.

Atrás mim, imperceptível,
E sem rosar-me ombros,
Meu anjo morto, vigiar.

Onde ti encontrar Paraíso,
Á Sombra, teu há estado?
Perguntas com ao silêncio.

Cidades sem resposta,
Rios sem fala, cumpres
Sem ecos, mares mudos.

Nada sabeis. Homens
Filhos, pé, na orelha
Parados nas tumbas,

Me ignoram. Aves tristes,
Dos cantos petrificados
Em êxtases do teu rumo,

Os cegos. Não sabem nada.
Sem sol, ventos antigos,
Estão inertes, nas léguas.

É por andar, levantando
Calcinados, caindo-se
Espadas, pouco disseram.

Diluídos, sem forma
Verdade se ocultaram,
Ouvem-se mim dos céus.

Já está fim da Terra,
Sobre o último fio,
Resvalar teus Olhos,

Morta minha esperança,
Este é dum pórtico Verde
Buscar nas negras samis.

Ô boquete das Sombras!
O Ervedeiro do Mundo!
Que confusão Secular!

Atrás, atrás! Que espanto
E das trevas sem vós!
É Perdida minha alma!

— Anjo morto, despertais.
Onde estás? Iluminais
Com teu raio retorno.

Silêncio. Mais silêncio.
Estão imóveis pulsos
Deste sem-fim à noite.

O Paraíso perdido!
Perdido hei buscar-te,
Eu, sem luz sempre.
Rafael Alberti
TRAD. ERIC PONTY

A JACTÃNCIA DE QUIETUDE - Jorge Luis Borges - TRAD. ERIC PONTY

Escrituras luz pregadas à sombra,
Mais insignes meteoros.
Supina cidade pasmosa arreceia sobre o campo.
Vestem minha vida de minha morte,
Esbocei ousar e quisera entender-nos.
Sendo que se fez do dia ávido laço ar.

A noite de trégua ira do ferro, finda assaltar.
Diz humanidade.
Minha caridade percebe
Somos vozes mesma penúria.
Graduados à pátria.

Minha pátria se fez ruído da guitarra,
Duns retratos velha espada,
Oração aberta sauzal crepúsculos.
Do tempo fizeram-se existir.

Sendo há mais silenciosa minha sombra,
Cortando tropel içado à usura.
Imperiosos, inusitados,
Sendo dignos da manhã.

Meu nome é dum alguém é dum qualquer.
Deu-se qual num lentor, quem houvera
De longínquos não se anseiam acercar.
JORGE LUIS BORGES
TRAD. ERIC PONTY

quarta-feira, fevereiro 28, 2018

SAUDAÇÃO - STEPHANE MALLARME - TRAD. ERIC PONTY

NADA, semelha casta espuma castidade,
Que não se designou senão dum só cimo;
Numa tal submersão tão longínquos rebanhos,
Tornaram-se sereias, muitas já tão contrárias.

Navegar, então amigos meus, reunidos,
Estava sobre espuma; sóis fastuosos frente,
Confinados folhagens raios tecidos invernos.

Ao menos da formosa ebriedade incita.
Nem sem sequer eu mandar-lhe, imersão,
Ao dirigir-me já em pé duma só Saudação:

— É Solidão, Arrecife, esta tua Estrela! —
Tudo feito há já lhe fazer jus dimensão,
Sendo alvo afã qual vossa justa lucidez.
STEPHANE MALLARME
TRAD. ERIC PONTY



segunda-feira, fevereiro 26, 2018

Total Olvidar - Hart Crane - The Nest - Ketil Bjornstad - TRAD. ERIC PONTY

Nunca hei tido deslumbrar total olvido desta canção,
Liberdade cantar é duma gigantesca errante,
Total olvidar ave fez-se igual às asas juntas
abertas serem inertes. -
Sendo aves parentes às costas ervas ventanias incertas.

Total olvido é um raio noturno,
Par duma velha casa em meio duma floresta, - Pueril.

Total olvido é dum clarão. –
Sendo alvura do qual à maldição duma árvore
Pode ter o poder atordoar à silábica profecia,
Do sepultamento de Deus.

Fazendo me lembrar muito bem total foi olvidado.
HART CRANE
TRAD. ERIC PONTY


sábado, fevereiro 24, 2018

O Mirto - Gerard de Nerval - TRAD. ERIC PONTY

Me acordei ti, ô Mirto, Mágica divina,
Do Pausílipo altivo, brilhante mil fogos,
De tua frente inundada destas luzes de Oriente,
O Doiro tuas tranças mexidas uvas negras.
Foi também em tua copa onde anunciei embriaguez,
E do raio furtivo de teus olhos sorridentes,
Quando dos pés Dionísio me vejam rezando,
Pois Musa me transformou num filho mais Grécia.
Sei por que dos leitos do vulcão tornou a abrir-se…
É do qual tinhas tocado haver com um pé ágil,
E tuas cinzas cobriram de pronto ao horizonte.
Rompeu dum duque normando tuas deidades de barro,
E desde que então, embaixo do Laurel de Virgílio,
Há haver sempre Hortênsia pálida reuniu ao Mirto Verde.
 Gerard de Nerval
TRAD. ERIC PONTY

sexta-feira, fevereiro 16, 2018

OS TRÊS REIS MAGOS - Rubén Darío – TRAD. ERIC PONTY

Eu sou Gaspar. Aqui trago o incenso.
Venho lhe dizer: Vida é pura e bela.
Existe Deus. O amor é imenso.
Todo o sei pela divina Estrela!

— Eu sou Melchior. Minha mirra aromatiza tudo.
Existe Deus. Ele é a luz do dia.
Branca flor tem teus pés em lodo.
E no prazer há a melancolia!

— Sou Baltasar. Trago-lhe ouro. Asseguro-lhe
Que existe Deus. O é grande e forte.
Todo o sei pela lâmpada pura
Que brilha no diadema da Morte.

— Gaspar, Melchior e Baltasar, calados.
Triunfa-lhes amor e a sua festa convida-os.
Cristo ressurgiu, faz-se à luz do caos
E tem a coroam da Vida!
Rubén Darío
TRAD. ERIC PONTY

A Tela do Almirante - Armando Tejada Gomez - TRAD. ERIC PONTY

Amanhece cedo a ele que não dormiu
A véspera, a antevéspera, aquele estrellerío
Do hemisfério norte imutável no céu.

Noite é como o dia: Uma interrogação
Ao absoluto. Adiante está mistério.
No estado fetal do universo.
O mundo limpo. O mar.
O demais é silêncio.

Sobre a mesa, mapas, constelações, notas,
Uma descomunal cartografia das costas ignotas
Roídas pela brisa dos marinhos cegos
Que não sabem onde pisarão, se pisaram
As Índias labirínticas, de extremos
Que não sabem nomear, que não superam,
Movidas perversas correntes dos mares,
Por canais de sombra,
Se é que acaso chegaram, si é que acaso moveram.
Agora está anotando cifras de frequência:
Farinhas, d´agua, sal, tasajo, batimentos,
Algum gado, de aves, baús, ferramentas,
Enfebrecido e só como um deus ao começo.

Cristóvão Colombo. Almirante de nada
Que não seja ao oceano.
Agora já à alvorada. Sírio, implacável e só,
O vendo empalidecer como dum olho do céu.

Aí vai rumo a seu Não. Dia é fantasma.
Não há haver apagado sua lâmpada.
Seguramente nunca voltará a escurecer.
Armando Tejada Gomez
TRAD. ERIC PONTY

DOMINGO NA MANHÃ - Raul Zurita - TRAD. ERIC PONTY

I
Me amanheço
Se rompo uma coluna
Sou uma Santa digo

III
Todo maquilado contra os vidros,
Me chame esta acesa fala-me que não
O ótima Estrela de Chile
Me toque na penumbra beijei minhas pernas
Me hei aborrecido tanto estes anos

XIII
Eu sou o confesso admirar-me na Imaculada
Eu lhe tiznado de negro

As freiras e os padres
Porém eles me erguem suas batinas

Debaixo suas roupas seguem brancas
 —Vem, somos as antigas noivas me dizem

Raul Zurita
TRAD. ERIC PONTY

Poemas de Amor - Miguel Hernandez - TRAD. ERIC PONTY

Por de fora tenho a crosta áspera

… Por de fora
Tenho a crosta áspera,
Porém por dentro tenho
Terna de palmito na alma.
Glorifico o que toco,
Da altura ao animo e graça;
E o que me induz, levando
Está na vitória em que andas.

Para chegar ao Senhor,
Fabrico eternas escalas
Que, sem um arco de dúvidas,
Sobem retas em tua estancia,
E ali já, resultam os cálices
E anjos de bronze e âmbar.

Muitos olham a minha altura,
Não pôr os bens nos guardam,
Senão pôr os que gotejam,
O maná de mel e de pasta.

Bem-aventurado daqueles
Que sem fiar-se meus ramos
Nem meus frutos cheguem a mim
Só por amor, por ânsia
De temerem e de olhar-me
Com enamorada da cólera!


Miguel Hernandez
TRAD. ERIC PONTY

CHARLES BAUDELAIRE - SONETOS - TRAD. ERIC PONTY

Correspondência 

Natureza é um templo onde viventes pilares
Deixam às vezes sair de confusas palavras,
Homem passa defeitos das florestas símbolos
Que se observou com teus olhares familiares.

Como longos ecos de longe se confundem
E uma tenebrosa e uma profunda unidade,
Vasta como à noite e como claridade
Os perfumes, as cores e sons correspondem.

Estão em perfumes frescos como claras crianças,
Doce como oboés verdes como pradarias -
E de outros que se corrompem ricos triunfos.

Possuem à expansão das coisas infinitas,
Como âmbar, almíscar, beijoim, incensos,
Que cantam transportes da alma dos sentidos.

Albatroz

Às Vezes a distrair os homens equipagem,
Prendem do albatroz vastos pássaros mares,
Que segue indolente companheiro de viagem
Um navio escorregadio sobre abismos amargos.

Á pena ele tem deposita sobre às tábuas,
Que estes reis do azul sem jeito vergonhoso
Deixando lamentável tuas grandes asas brancas
Como remo puxado nas tuas costelas.

Passageiro alado como ele está sem jeito débil
Ele há pouco era belo está cômico e feio
E um irritado bico com uma torrada goela
Outro mimo coxear revogar teu voo.

 Poeta é semelhante príncipe das nuvens,
Que se assombra tempestade e se ri arqueiro,
Acha-se exilado sobre chão meio toque 
Tuas asas de gigantes impedem de andar.



Elevação

Em cima dos charcos, em cima dos vales,
Das montanhas, dos bosques das nuvens, dos mares,
Por além o sol, por além por estas etéreas  
Por além dos confins das esferas das estrelas.

Meu espírito tu moves por agilidade,
Como um bom nadador se pasmar nas ondas
Tu sulcas alegremente imensidão profunda
Com há duma indizível e de má volúpia.

Esvoaçam longa distância de miasmas mórbidos
Vão te purificar neste ar superior bosques
Como dum puro e divino licor de fogo
É claro enchendo deste espaços límpidos. 

Atrás deste tédio e destas vastas mágoas
Que carregam teu peso existência brumosa
Alegre este pode de uma asa vigorosa
Caem ao versar campos luminosos serenos.

Este onde pensa como as cotovias
Versam céus manhãs pegado livre passagem 
Plana sobre a vida e compreende sem esforço
A linguagem das flores e destas coisas surdas.

Beleza

Eu sou bela ô mortais! Como um sonho duma pedra,
Meu seio donde cada está a magoar volta em volta
E fez para inspirar poeta um amor Eternal 
Na mudez que assim que à matéria se fez verbo.

Me sento no azul como esfinge incompreendida,
Eu uno-me coração negro na alvura dos cisnes,
Eu odeio movimento que desloca das linhas
E jamais eu nem choro e jamais eu nem sorrio.

Poetas em frente minhas grandes atitudes,
Que empresto aos mais vaidosos monumentos,
Calcinar teus dias em austeros estudos.

Tenho para fascinar estes dóceis amantes,
Puros espelhos fazer todas coisas mais belas
Meus olhos, largos olhos claros eternos.

Ideal

Nós nem seremos nunca estes belos vigores,
Produtos avariam nado século vadio,
Estes pés borzeguim os dedos castanholas
Que sabem satisfazer um coração como meu.

Eu deixo Gavarni, poeta destas cloroses,
Teus rebanhos chilreiam belos hospitais,
Pois que eu nem encontro dentre pálidas rosas
Uma flor se assemelha ao meu rubro ideal.

Esta que faz do coração dum profundo abismo,
Estais vós Lady Macbeth alma intenso dum crime,
Sonho Esquilo florindo ao clima destes suões.

Ou tu grande ô noite, filha de Miguel Ângelo,
Retorcerem pacíficos em um pôr bizarro
Os teus dons que formaram bocas dos titãs!

A gigante

Do tempo que a natura em tua verve influente,
Compreendendo cada dia crianças monstruosas,
Gostaria eu amado viver à beira jovem gigante,
Como aos pés duma rainha um gato voluptuoso.

Gostaria amado olhar teu corpo florir com tua alma,
E crescer livremente em teus terríveis jogos,
Prever se teu coração trama uma sombra flama,
Aos humildes nevoeiros que nadam em teus olhos.

Percorrer no descanso tuas magnificas formas,
Rastejar sobre vertente teus joelhos enormes,
E às vezes verão quando dos sois são vós doentios.

Cansar fazer estender defeito no campo,
Dormir despreocupado à sombra de teus seios,
Como lugar tranquilo aos pés de uma montanha.

Perfume exótico

Quando dois olhos firmes tarde calor outono,
Eu respiro o odor do teu seio caloroso,
Eu há vós estendeis a tua margem alegre,
Que te ofuscam o fogo dum sol tão monótono.

Uma ilha preguiçosa onde à natura é dada,
De árvores singulares de frutos saborosos,
De homens de onde os corpos elegantes vigores,
Mulheres de onde olho a tua franqueza admirada. 

Guiado por teu odor levo encantador clima,
Eu vós num porto cheios véus de xadrez,
E tudo é fatigado por uma vaga marinha.

E durante perfumes verdes tamarinheiros,
Que se circulam no ar e enchem as narinas,
Se misturam em minha alma aos cantos marinheiros.
CHARLES BAUDELAIRE
TRAD. ERIC PONTY

OUTONO SECRETO - Jorge Teillier – TRAD. ERIC PONTY

Quando as amadas palavras cotidianas
Perdem seu sentido,
E não se pode aludir nem o pão,
Nem d´água, nem da janela,
E tristeza há haver sido um anel perdido debaixo da neve,
E a recordação uma falsa esperança de mendigo,
E o falso todo diálogo que não sejas
Com nossa desolada imagem,
Há um se olham as destroçadas estampas
No livro do irmão menor,
É bom saudar os pratos e o mantel postos sobre a mesa,
E ver que no velho armário conservam sua alegria
O licor de guindas que preparou a velha
E as maçãs postas a se guardarem.
Quando da forma das árvores,
Há não é senão leve recordação de sua forma,
Uma mentira inventada
Pela turba memória do outono,
E os dias tem a confusão do desvão
Onde nada ascende,
E da cruel brancura da eternidade
Faz-se que a luz escapa de si mesma,
Algo nos lembra a verdade que amamos antes de conhecer:
Os ramos se quebram levemente,
A pomba se plena de adejos,
O celeiro sonha outra vez com o sol,
Acedemos para festa os pálidos candelabros
Do salão empoeirado
E o silêncio nos revela o secreto
Que não queríamos escutar.
Jorge Teillier
TRAD. ERIC PONTY

DON JORGE MANRIQUE - POESIA AMOROSA - TRAD. ERIC PONTY


POESÍA AMOROSA
DE DON JORGE MANRIQUE Queixando-se Do Deus DE AMOR, e COMO RAZÃO É UM COM O OUTRO

Ô mui alto deus do amor,
Por quem minha vida se guia!
Como sofres teu, senhor,
Sendo justo julgador
Em tua lei tal heresia?5

Que se perda ele que serviu,
Que s’olvide o servido,
Que viva quem enganou,
Que morra quem bem amou,
Que valga ao amor fingido?10

Pois que tais sem razões
Consentes passar assim,
Suplico-te que perdões
Minha língua, si, com paixões,
Dizer maus de ti.15

Se és deus de verdade,
Por que consentes mentiras?
Se tens em ti bondade,
Por que sofres tal maldade?
DON JORGE MANRIQUE
TRAD.ERIC PONTY

Alejandra Pizarnik - 3 Poemas - Trad. Eric Ponty

Silêncio
Eu me ligo ao silêncio
Eu me hei unido ao silêncio
E me deixo havê-lo
Me deixo beber
Me deixo dizer

Os náufragos detrás da sombra
Abraçaram a que se suicidam
Com o silêncio de seu sangre
A noite bebeu vinho
E dançou nua entre os ossos de neve.

Animal lançado ao seu rastro mais distante
A mulher nua sentada no olvido
Contudo sua cabeça rota vaga chorando
Na busca dum corpo mais puro.
Alejandra Pizarnik
TRAD. ERIC PONTY

quinta-feira, fevereiro 15, 2018

François de Malherbe - SONETOS - TRAD. ERIC PONTY

LXXXVII - A MONSEIGNEUR LE CARDINAL DE RICHELIEU

Golpear em nossos medos tenha mais razão,
Grande imo em bom labor sem descanso dado,
Pois que dos teus conselhos França está gerida,
Todos que trabalharam aura de tua cura.

Vão rejuvenescer a velha idade de Éson,
tal como essa Princesa em tuas mãos resinadas,
Vencer dos teus destinos rigor obstinado,
Ao retornarem tez de tua verde sessão.

O bom senso do meu Rei sempre faz prever,
Que dos frutos da paz se preencham de teu império,
E como um semideus ferino adoração.

Mas que um dotado de vista de hoje, o segundo,
Não lhe prometer que ele lhe deva esperar,
Se não nos prometer a conquista do mundo.

Epitáfio a mim mesmo

Vós olhais, passando, a sepultura,
Dum Chefe de Obras que se és precioso,
Que dos mil reis, de que são ancestrais,
Que foi-se menos sons aventura.

Ô que afronta com a natureza,
Que desta iniquidade feita ambos,
Que um momento calado aos olhares,
Que se fez de uma bela criatura!

Nossas dúvidas são da razão,
Destinos ausentes da sessão,
Que deste mundo se fez constrito.

Mas que teus pretextos são tão belos,
E que a terra se escora na sova,
Se não lavrarem destruir a flama.

Epitáfio de fogo Monseigneur Le Duc Dorléans

Mais março que o março de Trácia,
De que do meu pai vitorioso,
Aos reis igualmente gloriosos
Reféns dos primeiros lugares.

Minha mãe surgiu de uma raça,
Tão fértil como semideuses,
Que dos teus fulgores radiantes,
Que mitigam todas às luzes.

Eu sou feito do pó, contudo,
Tantos parques fazem tua lei,
De tão iguais e necessários.

Nada não me saibas evitar;
Saiba mais vulgar corações,
Ao morrer sem murmuração.

Ao Monsieur do Maine, sobre tuas obras espirituais

E teu encanto, com Maine, e falha reconheça,
E, coroados discursos encantam-me muito,
Que mundo de hoje não são mais resto de lama,
Me tenho profanado duma só duma fala.

Eu reconheço o amor, e já quitei teu império,
Não zanguei ao ponto escusa de minha crueldade,
Se da beleza de ambos não são só beleza,
Cujo dourar-me nunca espanta de escrever.

Calista olhar se lástima quase durar,
Desta forte paixão que me ordena-me jurar,
De que tenho em meus versos uma glória eterna. 

Mas, se deste meu juízo não está enlouquecido,
Devo eu estimar tédio me separa dele,
Tanto quanto ao prazer de passar-me por Deus?

LXXVII - A RABEL, PEINTRE, SUR UN LIVRE DE FLEURS 

ALGUNS louvores incomparáveis,
De que nos apela ainda hoje,
Esta obra plena de maravilhas,
Que Rabel acima nos coloca.

Arte supera tua natureza,
E se o meu juízo não é vão;
que flora se conduziu tua mão,
De quando ele fez esta pintura.

São certas privações aos meus olhos,
Dos objetos que eles mais adoram,
De não usar ponto da margarida.

Mas poderia de ser ignorante,
Que duma flor é de tanto mérito,
Que se fez distender do restante.

Ao senhor da Ceppède ao teu livro da Paixão de Nosso Senhor

Eu estimo, Céspede, e honrá-lo, e, de admirá-lo,
Como um dos ornamentos primeiro hoje em dia,
mas que, a tua pluma só dever deste discurso,
Certo , sem lisonjas, não me ousaria ti expor.

 Espírito de Deus, que tua graça se inspira,
naquele sem disfarce à espera de socorro,
Por elevar o nosso imo ao celeste amor,
Que sob um belo súdito escrever tão bem.

Rainha, à sorte da França, de todo o universo,
Quem vê cada dia tanta homenagem diversa,
Em apresentou à musa aos pés desta tua imagem.

Que bem que tua bondade propicie-se a todos,
Eu não reconheço nada, diante desta obra,
Que nunca viste qualquer coisa digna de ti.

XXXI - Soneto

Belos bons edifícios de estrutura eterna,
Soberbo da matéria, e das obras tão várias,
Então mais digno rei se fez deste universo,
Milagres da arte, feita ceder natureza.

Belos parques, de belos jardins, tua clausura,
Que sempre destas flores e folhagens verdes,
Não sem qualquer demônio que acuda invernos,
Dum nunca que se apague agradável pintura;

Lugares que dão ao imo, tão amáveis desejos,
Madeira, fontes, via, assim, dentre os prazeres,
O meu humor está aflito, meu rosto tão triste.

Que estes não estão ao ponto de aflorar das graças;
mas, que não nos importa ao ter não ter Calista,
E o meu eu não verei nada quando eu vir passar.
François de Malherbe
TRAD. ERIC PONTY

O CANTO DO CISNE - Jacobo Fijman - TRAD. ERIC PONTY

Demência:
O caminho mais alto e mais deserto.
Ofícios das máscaras absurdas; porém tão humanas.
Roncam os extravios;
Tossem suas mãos
E descarregam seus golpes
Afónicas lamentações.

Semblantes inflamados;
Dilatação quebradiça dos olhos
No caminho mais alto e mais deserto.

Se irizam os cabelos do espanto.

Há muita luz alada sua inocência.
O pátio do hospício é como um banco
Ao largo do muro

Cordas dos silêncios mais eternos.

Faço o sinal da cruz apesar de ser judeu.

Há quem chamar?
Há quem chamar desde caminho
Tão alto e tão deserto?

Se acerca de Deus em pilchas de psiquiatra,
E suicidar-me minha garganta
Com suas enormes mãos de sarmentos;
E meu canto se enrosca no deserto.

Piedade!


 Jacobo Fijman
TRAD. ERIC PONTY