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terça-feira, março 20, 2018

O CÂNTICO ESPIRITUAL - San Juan de la Cruz - TRAD. ERIC PONTY

Canções entre à alma e o Esposo


Esposa

Onde te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo foste,
Fazendo-me ferido;
Saí atrás ti clamando, e tu tinhas partido.

Pastores, os que fostes
Ali pelas marejadas ao outeiro:
Se por ventura vistes
Daquele que eu mais quero,
Decidi que adoeço, peno e morro.

Buscando meus amores
Irei por esses montes e ribeiras;
Nem colherei às flores,
Nem temerei as feras,
E passarei os fortes e fronteiras.


Pergunta as Criaturas

Ô bosques e espessuras,
Plantadas pela mão do Amado!
Ô prado de verduras,
De flores esmaltadas!

Decidi se por vós hei passado.

Resposta das Criaturas

Mil graças derramadas
Passou nestas arvoradas com presteza,
E, vendo-os olhando,
Com só sua figura
Vestidos os deixou de formosura.

Esposa

Aí, quem poderá sanar-me!
Acabei de entregar-te já de verdade;
Não queiras enviar-me
De hoje mais já mensageiro,
Que não sabem dizer-me o que quero.

E todos cantos vagam
De ti me vão mil graças referindo,
E todos mais me chagam,
E deixa-me morrendo
Um não sei do que que ficam balbuciando.

Mas como perseveras,
Ô vida! Não vivendo onde vives,
E fazendo porque morras
As flechas que recebes
Do que do Amado em ti concebes?
Por que, pois, há chagado
Aquente coração, não lhe sanaste?

E, pois, me lhe há roubado,
Por que assim lhe deixaste,
E não o tomas o roubo que roubaste?

Apaguem minhas raivas,
Pois que nenhum basta a desfaze-los,
E olhando-a meus olhos,
Pois és lume deles,
E só a ti quero tê-los.

Ô cristalina fonte,
Se nestes teus semblantes prateados
Formastes de repente
Os olhos desejados
Que tenho em minhas entranhas desenhados!

Aparta-os, Amado,
Que vou vê-lo.

O Esposo

Retorne, pomba,
Que o cervo vulnerado
Pôr o outeiro assoma
O ar de tu velo, e fresco toma.

A Esposa

Meu Amado, as montanhas,
Os vales solitários numerosos,
As ínsulas entranhas,
Os rios sonorosos,
O silvo dos ares amorosos,
Á noite sossegada
No par dos levantes da aurora,
A música calada,
A solidão sonora,
A cena que recreia e enamora.

Nosso leito florido,
De covas de leões enlaçado,
Em púrpura tendido,
De paz edificado,
De mil escudos douro coroado.

À zaga de tua marca
As jovens discorrem ao caminho,
Ao toque de centelha,
Ao adobado vinho,
Emissão do bálsamo divino.

No interior da bodega
De meu Amado bebi, e quando saí
Por todo aquele terreno fértil,
Já é coisa não sabia,
E o ganhei perdi que antes seguia.

Ali me deu seu peito,
Ali me ensinou ciência mui saborosa;
E eu lhe digo do feito
À mim, sem deixar a coisa:
Ali lhe prometi ser sua Esposa.

Minha alma se há empregado,
E todo meu caudal em seu serviço;
Já não guardo hei ganhado,
Nem já tenho outro oficio,
Que já só em amar é meu exercício.

San Juan de la Cruz
TRAD. ERIC PONTY

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